Tortura e violência estatal aumentam desigualdade, aponta estudo da USP

Atualizado em 4 de julho de 2021 às 16:32

Publicado originalmente na Rede Brasil Atual 

No último dia 15 de junho, o Brasil foi denunciado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos pela ausência de respostas às denúncias de tortura recorrente praticada entre 2015 e 2017 na unidade Cedro da Fundação Casa, do complexo Raposo Tavares, em São Paulo. A Defensoria Pública do estado apontou que 147 adolescentes sofreram violência psicológica e física, como sessões de espancamento com cassetetes, escudos e estilingues.

“Não houve qualquer providência além da demissão de alguns funcionários da unidade. Não houve reconhecimento da responsabilidade do Estado ou apuração das responsabilidades civis e criminais dos agentes nem tampouco reparação às vítimas”, apontou o defensor público Samuel Friedman, um dos responsáveis pelo encaminhamento da denúncia à OEA, ao jornal Folha de S.Paulo.

Nesta sexta-feira (2), a Justiça determinou o afastamento de cinco agentes e do diretor do Centro de Socioeducação Professor Antônio Carlos Gomes da Costa, na Ilha do Governador, no Rio de Janeiro. Eles são suspeitos de abusar sexualmente, diversas vezes, de adolescentes internadas. De acordo com o portal G1, o governo do estado foi avisado dos crimes cometidos contra internas na unidade socioeducativa e nada fez.

Os dois casos são ilustrativos da recorrência da violência estatal e da tortura praticada por agentes públicos brasileiros. Consolidada e legitimada em períodos autoritários da história nacional, mesmo quando a democracia esteve formalmente vigente tais práticas nunca deixaram de existir no país e são comuns não apenas no sistema socioeducativo e prisional, mas também na maior parte das periferias. As vítimas, em geral, além de serem invisibilizadas, muitas vezes acabam passando por um processo de revitimização diante da omissão do Estado.

O estudo “Tortura como Marca Cotidiana – Narrativas sobre os serviços de atenção às vítimas de tortura no Rio de Janeiro e São Paulo”, publicado pelo Núcleo de Estudos da Violência da USP na última quinta-feira (1º), elaborado pelas pesquisadoras Maria Gorete Marques de Jesus e Giane Silvestre, da USP, com Thais Lemos Duarte, do Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública (Crisp) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em parceria com o instituto dinamarquês Dignity, analisa, por meio de entrevistas com atores da sociedade civil e do poder público, as perspectivas atuais sobre o atendimento concedido a vítimas de violações de direitos nos dois estados.

Entre outros pontos, a pesquisa destaca a dificuldade em se fazer um diagnóstico da situação da tortura no Brasil em função da deficiência na produção de dados sobre a prática, “seja pela ausência de informações sistematizadas sobre tal violência, seja pela desarticulação entre os órgãos que recebem denúncias, que possuem metodologias muito distintas para a quantificação da ocorrência de tortura no país”. Diante disso, analisar as informações relativas à letalidade policial e à superlotação prisional ajudam a contextualizar a recorrência da violência de Estado e de seus agentes.

“Os dois locais apresentam, em números absolutos, os maiores níveis de letalidade policial do país. Entre janeiro e junho de 2020, 514 pessoas foram mortas pela polícia no território paulista, ao passo que 775 morreram no fluminense, conforme dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, além de serem estados que apresentam um número substantivo de pessoas privadas de liberdade no sistema prisional: 231.287 (São Paulo) e 50.822 (Rio de Janeiro)”, diz o texto da pesquisa.

A (não) responsabilização pela prática de tortura

No Brasil, o crime de tortura é tipificado pela Lei 9.455, de 1997, que define o delito a partir da conduta de “constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental com a finalidade de a) obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceiros; b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa; c) em razão de discriminação racial ou religiosa”. A prática é punida com pena de reclusão de dois a oito anos, e pode ser aumentada caso seja cometida por agente público, contra criança, gestante, portador de deficiência, adolescente ou maior de 60 anos, e mediante sequestro.

Uma especificidade da norma brasileira em relação às classificações internacionais sobre tortura é o fato de ele ser um crime comum e não próprio de agentes do Estado, a exemplo do que acontece em outras legislações. Como se menciona no estudo, “é mais habitual ocorrer a punição de pais, mães, cuidadores, padrastos e madrastas por tortura, em detrimento da responsabilização de atores públicos, como policiais ou agentes penitenciários”.

As pesquisadoras apontam que a “violência estatal no Brasil, difusa e heterogênea, tem (re) produzido um processo histórico de desigualdade econômica e social, cuja tônica sempre foi a violência”. “As agências de segurança e justiça criminal perenizam o racismo nas suas práticas legais. Ao mesmo tempo, legitimam suas dinâmicas ilícitas através de instrumentos formais, como investigações policiais que consideram somente a ‘verdade’ dos agentes públicos, desprezando outras provas e testemunhos.”

Em relação à “verdade” dos agentes, em especial dos policiais que tem a chamada fé pública em processos penais e muitas vezes são a única testemunha de fatos que resultam em condenações, trata-se de um aspecto que não se encontra isolado no sistema de justiça.

Os entrevistados na pesquisa mostram que a atuação dentro do aparato do Estado ajuda a invisibilizar e perpetuar a violação de direitos.

“A banalização da violência é reforçada pelas instituições responsáveis por investigar, processar e julgar as ações abusivas dos agentes estatais. Tal proceder começa desde o registro policial do caso, o qual muitas vezes apresenta apenas a versão dos agentes de segurança, sobretudo, quando a vítima veio a óbito (Jesus, 2019). Não obstante, como já pontuamos, uma das mães com quem dialogamos disse que, ainda na delegacia, o escrivão inseriu e buscou levantar informações que desqualificavam a morte de seu filho: ‘ah ele era usuário de drogas’, ‘com quem ele andava?’, ‘ah ele tinha passagem!’. Isto é, a vítima é responsabilizada, ao passo que a percepção do policial sobre o fato ganha forte projeção. ‘A palavra da vítima não vale nada, a palavra do policial vale para condenar e vale para absolver’.”

Um dos obstáculos ao combate à tortura no Brasil se encontra em aspectos socioculturais como a percepção de parte da sociedade de que a tortura pode ser aplicada em determinadas situações e sobre grupos específicos, como aqueles tidos como criminosos. “Essa banalização está disseminada de tal forma na sociedade que convencer os familiares das vítimas a buscarem justiça, por vezes, é um desafio. Muitos não reconhecem isso como um direito, já que a garantia de reclamar a morte de um ente pelas mãos do Estado parece ser algo distante. As próprias vítimas têm dificuldades em se compreenderem como vítimas. Muitas não perfilham as violações sofridas como atos torturantes, principalmente quando as agressões não ‘deixam marcas’”, pontua o estudo.

Normalização perversa e a resistência das mães

“Essa normalização, de dizer que não tem prática de tortura, é que o Estado coloca para a mídia sensacionalista, para o asfalto do povo branco, eles ocultam estas questões. Mas pra gente que vive este cotidiano é algo absurdo, devastador, e infelizmente só é dado como tortura se algum especialista, da academia, fale que é tortura. O povo da favela já vem gritando há muito tempo que não aguenta mais ser torturado, assassinado e encarcerado por esse Estado. Mas, infelizmente, como somos a maioria do povo, mas com uma condição socioeconômica muito baixa e que para eles não têm importância, somos corpos matáveis, somos seres descartáveis para essa sociedade branca, elitista e racista.”

O depoimento acima é de Eliene Vieira, mãe que integra o Movimento das Mães de Manguinhos, que participou da live de lançamento da pesquisa. “Quando acontece uma operação policial na favela, a mídia não vê naquele momento que a tortura está acontecendo, normalmente vem depois e fica com o relato dos policiais e da guarnição que está executando aquela operação”, conta. Ela falou ainda a respeito da sua experiência pessoal com a arbitrariedade estatal.

“Meu filho foi baleado em uma operação policial, foi socorrido por mim, mesmo assim foi sentenciado a 10 anos e sete meses porque, por medo de assassinarem meu filho, eu disse que ele foi baleado na rua. Dei um falso testemunho de crime e quem foi preso foi meu filho. Eu cometi o crime, mas por ser um jovem negro, morador de favela, ele que foi preso”, diz. “Porque a polícia não aceita que um jovem favelado tenha sido alvejado sem estar trocando tiros. Acham que todas as pessoas moradoras de favela que têm a pele negra são bandidos. Por conta disso, ele foi sentenciado a 10 anos e sete meses, pela fala de dois policiais, porque aqui no Rio de Janeiro tem a Súmula 70, que diz que basta a palavra de dois policiais para condenar qualquer pessoa. O juiz prefere acreditar na palavra dos policiais do que acreditar nos fatos da operação.”

A Súmula 70 do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, a qual Eliene se refere, diz que ‘o fato de restringir-se a prova oral a depoimentos de autoridades policiais e seus agentes não desautoriza a condenação”. Em 2016, o defensor Emanuel Queiroz, coordenador de defesa criminal da Defensoria do estado do Rio de Janeiro, já contestava o caráter da argumentação. “O juiz tem uma necessidade constitucional de fundamentar suas decisões. Tem de dizer o que o leva a escolher uma das versões apresentadas pelas testemunhas e pelo réu. Com a súmula, não precisa justificar o afastamento das versões do réu e das testemunhas de defesa, o que potencializa as condenações. Ou seja, ela não é um instrumento jurídico, mas sim de segurança pública.”

O peso do racismo

“Recorremos da sentença graças à Defensoria do Rio de Janeiro, que é espetacular e muito atuante, que pediu vista do processo do meu filho. A pena dele caiu para 5 anos e dez meses, mas mesmo assim a Defensoria não aceitou o que estava escrito como argumento no processo, entrou com embargos infringentes e hoje meu filho ainda está em livramento condicional porque não saiu no Diário Oficial, mas a pena que deram para o meu filho nem cabia prisão para ele”, explica Eliene.

“Conclusão, meu filho ficou preso mais de dois anos e meio, dentro do Complexo de Gericinó, foi preso em maio de 2016 e saiu no finalzinho de 2018. O processo dele não cabia prisão, e nesses quase três anos em que ele ficou preso foi torturado, a alimentação dele nem porcos comem, quem sustentou o meu filho foi eu. Eu que trabalhei, que levei comida, remédio, roupa. Este Estado é muito mais violador do que qualquer pessoa que esteja hoje no sistema prisional. O Estado não me deu nada. Se meu filho está vivo hoje é porque grito pela vida dele e por todos os outros jovens que estão na favela.”

“O racismo especialmente está muito presente neste fenômeno da tortura. Temos um público-alvo dessa violência com um perfil definido, a maioria são jovens, negros e pobres e quando vamos olhar o perfil das pessoas que denunciam essa violência, a maioria são mulheres, também negras e pobres”, explica uma das autoras da pesquisa, Gorete Marques de Jesus, também no evento de lançamento.

“Não é à toa que temos estes movimentos de periferias urbanas que mobilizam o termo ‘mãe’ para se autodesignar, como as Mães de Manguinhos, de Acari, Mães de Maio, da Candelária, da zona leste. São alguns dos grupos que se agregam em uma identidade de luta política e que tem um papel de gênero muito vinculado. Buscam dar visibilidade a situações de violência sofridas não só pelos seus filhos, mas por esse perfil alvo da atuação policial.”

Gorete ressalta que os movimentos acabam se transformando em uma rede de acolhimento e de acesso de informação das pessoas que buscam acionar o sistema de justiça, por exemplo, para alcançar a responsabilização em uma situação de violência, criando laços afetivos entre as pessoas que acham um sentido na luta contra a violência estatal.

“A tortura tem sido muito frequente em sociedades onde há extremas desigualdades sociais”, aponta o sociólogo, professor da FFLCH-USP e coordenador do NEV-USP Sergio Adorno. “Nestas sociedades onde há desigualdades, existe uma concepção, que pode ser entendida até como uma herança de regimes coloniais atualizados ao longo da história da cultura, que considera os desiguais como propriedade daqueles que têm poder. E a sede dessa propriedade é o corpo. Desde a história da escravidão no Brasil, na história como as mulheres e as crianças foram tratadas na chamada Casa Grande, o corpo era propriedade do senhor. Propriedade em um regime patrimonialista de fortes raízes patriarcais.”