Tudors

Atualizado em 24 de maio de 2013 às 12:03

Gosta dos Tudors? Então reproduzo para você esta entrevista que fiz, no ano passado, para a revista Época.

Justin Polard é um tipo relativamente comum no Reino Unido e absolutamente raro no Brasil: um historiador que escreve com clareza, estilo, vivacidade, sem medo de parecer comercial, frívolo ou superficial. Autor de oito livros de história, egresso da prestigiosa Universidade de Cambridge, que ao lado de Oxford forma os filhos da elite financeira e intelectual da Inglaterra, Pollard é consultor da série Os Tudors, que narra a saga transformadora, sangrenta e fascinante de Henrique VIII. Quintessência do monarca absoluto, ele conseguiu tudo o que quis – exceto, ironicamente, o que foi seu maior desejo, um filho homem que lhe sucedesse e garantisse a continuidade dos Tudors no trono. Pollard foi o consultor histórico da série. As queixas de historiadores em relação a certos aspectos de Os Tudors não lhe tiram o sono, mas o bebê que tem em casa sim.

O rei Henrique VIII foi tão bonito quanto ele é retratado na série? Os quadros do século XVI costumam mostrá-lo como um homem gordo e feio. Você poderia explicar isso?
Justin Pollard –
Henrique VIII foi considerado muito bonito quando era jovem. Ele era um perfeito monarca renascentista: escritor, músico, esportista, caçador, poeta, tudo o que um rei deveria ser. Muito saudável e poderoso também. Os retratos que temos hoje dele são cópias de um mural perdido de Hans Holbein, o Jovem. O mural tinha uma perspectiva distorcida do rei para fazê-lo parecer mais forte e mais imponente.

Depois de um acidente numa justa (tradicional esporte medieval, em que dois cavaleiros armados de lanças tentam derrubar um ao outro do cavalo) em 1536, Henrique ficou acima do peso, especialmente pela incapacidade de fazer exercícios. Isso foi acentuado porque ele sofria de gota. Na fase mais gorda, sua cintura media 137 centímetros. Os furúnculos na perna, a gota e a enorme circunferência certamente não tornavam Henrique muito atraente nesse momento.

Há muito sexo na série. A aristocracia inglesa era de fato tão promíscua?
Pollard –
A promiscuidade na aristocracia é uma história mista. A nobreza tinha a oportunidade de ser promíscua sem que nada de ruim lhe acontecesse. Alguns nobres eram, em consequência, extremamente promíscuos. Já aqueles mais religiosos, nem tanto. Geralmente, os jovens príncipes tinham várias amantes. Henrique não era diferente, apesar de muitos de seus supostos casos nunca terem sido provados. Na verdade, só há provas concretas sobre dois deles, mas é provável que houvesse outros. A corte real era cheia de tensão sexual. As pessoas no poder naquela época eram mais novas que nossos governantes de hoje. Reis podiam ser adolescentes, e o papa mais jovem tinha 18 anos. Portanto, os hormônios desempenhavam um papel importante na vida. Quanto à promiscuidade das pessoas comuns, ninguém sabe ao certo, pois quase não existem registros sobre seus costumes. Como a vida era curta, e aos 40 anos você já era um homem velho, não acredito que o rígido pudor vitoriano pudesse reinar naquele tempo.

Qual foi o maior legado de Henrique VIII como rei?
Pollard –
Foi a ruptura com Roma em 1533 e 1534, o que oficializou a reforma religiosa inglesa. Henrique tirou a Igreja, suas terras e suas riquezas, que eram imensas, do controle estrangeiro do papado e pôs tudo isso nas próprias mãos. A dissolução dos mosteiros teve um impacto incalculável na vida britânica. A riqueza que isso liberou permitiu a Henrique remunerar seus seguidores e transformar a Grã-Bretanha numa potência europeia, algo que nunca fora anteriormente. A ruptura com a Igreja também mudou a forma física e a crença espiritual na região rural inglesa. Mosteiros foram demolidos e substituídos por casas privadas. O sistema religioso que promovia o bem-estar do povo, no qual os ricos eram encorajados a fazer caridade para salvar sua alma, foi removido, deixando os pobres sem nenhum amparo. Ainda, o calendário de rituais sob o qual as pessoas viveram por séculos, e que era baseado na Igreja Católica, foi rasgado. Nem tudo isso permaneceu intacto depois do fim do reinado de Henrique, mas ele promoveu uma série de mudanças.

Li que cerca de 85% da série é verdade. Quais 15% são ficção e por quê?
Pollard –
Nós recebemos algumas reclamações de historiadores em relação à precisão de Os Tudors, mas acredito que muitas vezes eles se confundem. Os Tudors não é um documentário, tampouco uma máquina do tempo na qual se pode visitar o passado. É uma série baseada em fatos reais. Pegar a história de Henrique e transformá-la em quatro séries de dez horas requer muita edição. Há vários elementos de sua vida que precisaram ficar de fora. Alguns porque não achamos que seriam atraentes, alguns porque seriam excessivamente caros e alguns porque seriam confusos.

Um exemplo são as irmãs de Henrique. Quando mostramos Henrique com apenas uma irmã na série, alguns historiadores disseram que nós “estupidamente havíamos nos esquecido de que ele tinha duas”. É claro que sabíamos disso, mas em nossa narrativa as irmãs tinham papel secundário. E, como uma delas se chamava Maria Tudor, o mesmo nome de uma das filhas de Henrique, que apareceria com frequência nos episódios posteriores, achamos que seria mais fácil e menos confuso reunir elementos das duas irmãs em apenas uma, a Margarete.

Por que, em sua opinião, as pessoas são tão fascinadas pelos Tudors? Não apenas a série, mas a dinastia como um todo?
Pollard –
Os Tudors foram os primeiros grandes propagandistas na história da monarquia inglesa. Eles projetaram publicamente a imagem de um reinado que era poderoso e grandioso. O próprio Henrique foi o primeiro dos reis ingleses que exigiram ser chamados de “Vossa Majestade”. Os monarcas Tudors se preocupavam em como sua imagem era apresentada, permitindo que apenas alguns retratos circulassem no mundo. Além disso, controlavam também as mídias populares, como o teatro. Por isso você raramente vê uma pintura de uma Elizabeth velha e debilitada. As peças históricas de Shakespeare promoviam a legitimidade da dinastia Tudor, e ter um escritor como William Shakespeare de seu lado não é nada mau. E há ainda a história pessoal de Henrique. Ele é o tipo de homem poderoso que não poupa esforço para conseguir aquilo que quer. Henrique foi um legítimo herdeiro masculino, e deixou, ao morrer, uma trilha ruinosa nessa questão, para não falar no estrago que ele provocou em suas seis mulheres.

Qual das rainhas é sua favorita e por quê? Você poderia dizer algumas palavras sobre cada uma delas?
Pollard –
As mulheres de Henrique são uma mistura extraordinária. Elas são uma das principais razões pelas quais a história de Henrique nos fascina tanto hoje em dia.
Catarina de Aragão tinha casado com o irmão mais velho de Henrique, que morreu subitamente. O então rei Henrique VII arranjou outro casamento para ela com o novo herdeiro da coroa, Henrique VIII. Nós muitas vezes nos esquecemos de que ela foi rainha da Inglaterra por quase 24 anos e que, depois de sua substituição, Catarina continuou agindo de forma digna apesar de ter sido absurdamente maltratada. Ana Bolena tem um lugar especial entre minhas afeições por ter participado dos dois filmes Elizabeth, em que a estrela é sua filha com Henrique. (Pollard esteve envolvido em ambos os filmes.) Ana Bolena era esperta e sincera, algo que Henrique havia adorado nela quando era sua amante, mas que considerou inapropriado para uma esposa e rainha. Ela foi hostil à influência de Cromwell (principal assessor de Henrique) sobre o rei e ao progresso da dissolução dos mosteiros. Isso foi um dos motivos para ela ter sido afastada e executada, tanto quanto seu fracasso em produzir um herdeiro varão. O julgamento de Ana Bolena foi uma fraude absoluta. Ela era, na verdade, inocente, mas foi condenada, e ainda assim morreu com grande dignidade. Jane Seymour foi a mulher favorita de Henrique, tanto que ele foi enterrado a seu lado. Jane produziu o tão esperado primogênito do rei (Eduardo VI, que reinou mas morreu aos 15 anos, sem se casar). Ela foi, aparentemente, mais discreta que Ana Bolena e menos politizada, mas não podemos afirmar isso com certeza, pois Jane foi rainha por um período curto. Alguns historiadores acreditam que ela teve um papel decisivo na queda de Ana Bolena. Isso, porém, nunca foi provado. A morte de Jane, por complicações pós-parto, foi um grande baque para Henrique. Ana de Cleves durou apenas seis meses como rainha. A razão de Henrique não ter se dado bem com ela é incerta. Talvez ele não a achasse fisicamente atraente. Certamente o casamento nunca foi consumado, e, depois de seis meses, Henrique pediu a anulação, que Ana aceitou. Ela permaneceu na Inglaterra e se comportou com grande decoro. Ana recebeu uma generosa soma de dinheiro e era bem-vinda na corte, onde a chamavam de “Irmã Amada do Rei”.

Catarina Howard ficou casada com Henrique por 16 meses, num momento em que foi, talvez, a crise de meia-idade do rei. Ele estava com quase 50 anos e ela tinha, provavelmente, 19. Catarina Howard era muito indiscreta e admitiu ter tido alguns casos antes de se casar, um fato que invalidaria o matrimônio. Há indícios de que ela manteve amantes, também, durante o casamento. Catarina Howard era jovem e inocente. Tragicamente, acabou pagando por isso com a cabeça.

Catarina Parr foi, talvez, a mulher com quem Henrique deveria ter ficado junto desde o começo. Ela era virtuosa, astuta e leal. Catarina Parr usou a inteligência para promover suas crenças, mas sempre lembrando quão perigoso era o mundo em que vivia, e não entrando em conflitos com pessoas poderosas, em especial o próprio rei. Apesar de a história de Ana Bolena ser a mais fascinante, eu diria que Catarina Parr é minha rainha favorita. Ela entendia o jogo que estava jogando.

Você esperava que a série fizesse tamanho sucesso?
Pollard –
Sempre há a expectativa de que a série de televisão ou o filme em que você trabalha sejam um sucesso. Mas todos nós ficamos surpresos com o tamanho do interesse nos Estados Unidos por um episódio da história inglesa de 500 anos atrás. Se já houve algum período na história europeia capaz de captar a imaginação das pessoas, foi esse. A máquina de propaganda de Henrique funciona tão bem hoje quanto funcionava em seu tempo.