Ucrânia: “Biden causa conflito porque crê que Europa se emancipou demais”, diz ao DCM deputada ucraniana

Atualizado em 21 de fevereiro de 2022 às 22:09
A deputada Valeria Faure-Muntian. Foto: Assessoria de imprensa

“O impacto é desastroso e considerável”, diz Valeria Faure-Muntian, deputada francesa que nasceu e viveu na Ucrânia, sobre os efeitos da crise atual envolvendo a Rússia.

O país que ela deixou no final dos anos 1990, explica, se recuperava econômica e diplomaticamente nos últimos anos. Tudo parece ter ido por água abaixo em uma questão de meses.

“A grívnia [moeda nacional ucraniana] já havia caído com a saída das famílias de diplomatas de maneira considerável e os investidores estrangeiros, dos quais a Ucrânia precisa cruelmente, hesitam a deixar o país e os que queriam investir adiam seus investimentos ou os anulam.”

“A crise atual pôs a Ucrânia numa postura de vítima, a postura que ela tinha desde 2014 por causa da agressão e anexação da Crimeia. Ela sofre porque só se fala da Ucrânia negativamente, em imagem de guerra. Na imprensa, no imaginário coletivo, é a imagem que ficará. Porque ela foi colocada novamente sob tutela”.

Na visão da presidente do grupo parlamentar de amizade com a Ucrânia, enganam-se os que pensam que uma eventual adesão à OTAN motivou o conflito atual. “É apenas a manipulação de informação por parte dos Estados Unidos. E do fato de que a Rússia se aproveitou e jogou lenha na fogueira.”

O continente europeu estaria sendo alvo de uma represália. “Penso que Joe Biden estima que a Europa se emancipou demais sob Trump e que não está suficientemente presente ao lado dos Estados Unidos na guerra econômica contra a China.”

“Esse diálogo de surdos entre Biden e Putin foi conduzido por três meses até a metade de janeiro sem a Europa, sem a Ucrânia. Joe Biden declarou que ele consultava e prestava contas aos europeus e aos ucranianos. A realidade era outra”.

Nesta entrevista exclusiva ao DCM*, Faure-Muntian fala das impressões e aspirações dos cidadãos ucranianos, da viagem de Bolsonaro à Rússia, do papel dos diferentes países europeus e do futuro da Ucrânia após a crise atual.

DCM: A senhora nasceu em Kilia, na Ucrânia, mas após a sua adolescência você se naturalizou francesa e renunciou à nacionalidade ucraniana. Poderia contar esse período de sua história?

Valeria Faure-Muntian: Efetivamente eu nasci na Ucrânia, nos anos 1980, e meus pais deixaram o país rumo à França no final dos anos 1990. Eu, enquanto menor, fui levada “na mala” com meus pais. Eu tive de fazer uma escolha de nacionalidade depois da maioridade. Escolhi, enquanto adulta, adquirir a nacionalidade francesa. Necessariamente, pois a Ucrânia não reconhece a dupla nacionalidade. Eu tinha em torno de 20 anos.

Foi uma decisão fácil para a senhora?

Não foi uma decisão simples, mas fazia vários anos que eu vivia na França e meus pais não planejavam voltar para a Ucrânia. A partir desse momento, era bastante natural me regularizar na França em termos de naturalização.

Eu sequer imaginava que eu precisaria renunciar à minha nacionalidade ucraniana. Foi ao longo do processo que eu descobri que eu não poderia manter as duas. Aos 20 anos, eu já estava engajada demais. Eu tinha uma vida na França. Eu era mãe de um menino pequeno. A partir daí, eu decidi continuar o processo de naturalização francesa.

A senhora se sente ucraniana, apesar de não poder manter a nacionalidade do ponto de vista burocrático?

Quando me fazem esse tipo de pergunta, eu tenho a tendência de responder de maneira bastante simples: você ama seu pai e sua mãe? Eu amo a França e a Ucrânia da mesma maneira. Não se escolhe. Ela (a Ucrânia) permanece sendo minhas raízes. Ela permanece sendo o começo da minha vida. Eu parti bastante tardiamente, aos 14 anos. É uma idade em que se adquire a cultura inicial, local, além do perímetro de seus interesses.

Começamos a nos interessar pelo que se diz na televisão, na imprensa, pelo que os adultos dizem. Começamos a compreender certos conceitos. É evidente que a Ucrânia está no meu coração porque a Ucrânia me viu nascer, mas eu sou grata à França pelo acolhimento que ela me fez e das oportunidades que eu tive de continuar meus estudos e inclusive de me engajar na política a fim de servir a nação.

A senhora poderia compartilhar conosco as razões que levaram sua família a deixar a Ucrânia num momento tão particular da história?

Para mim, é muito complicado falar desse tipo de coisa. É uma decisão dos meus pais. Os pais que cresceram na União Soviética não são pais que compartilham e explicam às crianças. Eu não sei se é suficientemente compreensível.

Na Europa, há um diálogo entre pais e crianças. Ele pode ser ruim. Ele pode ser bom. Mas há uma comunicação. No país onde eu vivi, não é comum que os pais expliquem às crianças suas escolhas, suas decisões. Eles anunciam o resultado. Eu não tenho as causas e consequências das escolhas e decisões de meus pais.

Para mim, é mais difícil falar sobre. E ainda hoje na idade adulta, eu tenho muita dificuldade de obter explicações. É assim.

Sua identidade é ao mesmo tempo francesa e ucraniana?

É difícil falar em identidade. O que define uma identidade? Uma identidade é administrativa, em princípio. A Ucrânia está presente no meu coração, mas estamos mais próximas de um sentimento, como um sentimento religioso, algo que é dificilmente palpável.

Por outro lado, no meu entorno, às vezes diz-se “essa reação ou esse comportamento ou esse modo de fazer as coisas provam suas raízes”. Mas eu não percebo. Eu cresci também na França. Eu me engajei mais do que a média, pois eu fui até as eleições parlamentares. É muito difícil conceber o que é a identidade para alguém que foi desenraizado e acolhido em outro país. Eu sou francesa, ou me sinto francesa, então eu não saberia dizer como eu definiria minha identidade.

Por outro lado, eu vejo a facilidade que eu posso ter com meus interlocutores ucranianos, porque eu falo russo, que é minha língua materna. A Ucrânia foi por muito tempo bilingue. Se o ucraniano é hoje a língua oficial da Ucrânia, o russo é bastante praticado.

Eu tenho essa facilidade porque compreendo a cultura do meu interlocutor. Recentemente foi-me pedido para analisar a coletiva de imprensa do presidente Macron e do presidente Putin. (Eu disse que) em russo utiliza-se muito pouco o futuro do pretérito. Ele existe em termos gramaticais. Ele é mais utilizado de maneira literária, raramente na língua falada.

Quando o presidente Putin utiliza muito o futuro do pretérito na sua última frase na coletiva de imprensa, qualificando as propostas de Emmanuel Macron, é bastante revelador do fato de que ele não lhes considera decididas e que será necessário muito trabalho para que elas sejam decididas. Isso revela o nível de confiança no realismo de suas propostas.

Neste ponto, eu sou sensível. Isso revela uma parte da minha cultura, não necessariamente da minha identidade, mas da minha capacidade de análise, que é um pouco diferente de uma francesa “da gema”. Daí a falar em identidade, é muito complexo.

Joe Biden e Vladimir Putin
Joe Biden e Vladimir Putin


O presidente Putin desconfia das propostas de Emmanuel Macron?

Não é desconfiança. É uma palavra forte a que você utilizou. É mais um ceticismo, uma sensação de que não houve avanço. Quer dizer, a primeira proposta merece ser rediscutida.

A senhora mantém uma relação bastante forte com a Ucrânia, pois preside o grupo França-Ucrânia no Parlamento. Qual é a sua ação nesse âmbito?

O grupo de amizade serve para fazer diplomacia parlamentar, promover o diálogo entre parlamentares franceses e parlamentares do país do qual somos amigos.

Enquanto presidência, nós mesmos definimos nossa linha política. Eu fiz escolhas analisando a situação da Ucrânia na França e a visibilidade da Ucrânia. Eu fiz a escolha de desenvolver a visibilidade da Ucrânia na França através de delegações parlamentares que eu levei à Ucrânia, colóquios e eventos que organizei e dos quais participei.

Em seguida, eu desejei trabalhar sobre as relações econômicas bilaterais, parcerias econômicas entre Ucrânia e França, não do ponto de vista da ajuda econômica da França à Ucrânia enquanto país em dificuldades mas uma relação bilateral em que a Ucrânia tem coisas a oferecer e a França tem coisas a oferecer à Ucrânia.

Há diversas temáticas de estudos que desenvolvi: as infraestruturas na Ucrânia, as parcerias agroalimentares, parcerias em matéria de novas tecnologias, de cibersegurança. Acho que o resultado é bastante salutar. Antes da crise atual, falava-se muito mais da Ucrânia na França. Os dois países assinaram uma grande quantidade de contratos em para desenvolver as relações comerciais. E em matéria de cibercriminalidade, França e Ucrânia começam a cooperar para processar cibercriminosos. Então houve um grande progresso nesses últimos 5 anos nas relações bilaterais entre França e Ucrânia.

Quais são os impactos para a Ucrânia desde essa última crise com a Rússia?

O impacto é desastroso é considerável. Estou pedindo aos meus contatos para fazer uma avaliação e análise econômica. Nessa crise, a Ucrânia sofreu, principalmente na economia e na sua imagem.

A Ucrânia se recuperou nesses últimos anos e tornou-se um parceiro confiável, com os quais se podia negociar uma certa quantidade de contratos, acordos e parcerias. A crise atual pôs a Ucrânia numa postura de vítima, a postura que ela tinha desde 2014 por causa da agressão e anexação da Crimeia. Então sua imagem sofre terrivelmente.

Por que ela sofre? Ela sofre porque só se fala da Ucrânia negativamente, em imagem de guerra. Na imprensa, no imaginário coletivo, é a imagem que ficará. Porque ela foi colocada novamente sob tutela, quando na verdade é um país soberano e autônomo e que havia retomado essa imagem como soberano e autônomo, pois Joe Biden e os Estados Unidos decidiram negociar com a Rússia diretamente, passando por cima da Ucrânia e até por cima da União Europeia.

Depois, há um apoio do presidente Macron e do chanceler Olaf Scholz, que tentam colocar a Ucrânia e seu governo no debate, mas infelizmente não ainda no centro do debate. Não há equilíbrio no diálogo entre o ocidente e Putin. Então a Ucrânia é novamente colocada sob tutela diplomática.

Para completar, sua economia sofre terrivelmente. As escolhas que foram feitas pelos Estados Unidos e o Reino Unido – primeiro, de retirar as famílias de diplomatas e funcionários não essenciais para o funcionamento das embaixadas; agora, os Estados Unidos e certos países convocam seus cidadãos a deixar a Ucrânia e isso é um sinal desastroso para a economia ucraniana.

A grívnia já havia caído com a saída das famílias de diplomatas de maneira considerável e os investidores estrangeiros, dos quais a Ucrânia precisa cruelmente, hesitam a deixar o país e os que queriam investir adiam seus investimentos ou os anulam.

A União Europeia propôs uma ajuda de 1,2 bilhão de euros à Ucrânia. Será suficiente para reparar os prejuízos?

Não, por diversas razões. Por um lado, o dinheiro que chegará da União Europeia não chegará imediatamente. Tem uma determinada quantidade de procedimentos, é preciso que seja votado. Depois, a Europa nunca dá dinheiro “assim”, ela vai baliza-lo. Em terceiro lugar, não é na economia real que esse dinheiro vai ser investido. Esse dinheiro vai ser investido em infraestruturas, em muitas áreas, mas a economia real continuará sofrendo.

No discurso do Kremlin, sua ação nas fronteiras com a Ucrânia é uma reação à extensão da OTAN. Concorda com essa visão e quem começou esse conflito?

Eu discordo particularmente dessa percepção. Penso que esse discurso chegou tardiamente no debate e é, mais uma vez, um revelador do oportunismo do Kremlin. Uma vez que a crise começou, começa-se a negociar coisas que não tem absolutamente nada a ver com a crise.

A Rússia efetuou uma determinada quantidade de manobras militares. Eles nunca penetraram na Ucrânia.

Salvo no caso da Crimeia?

Sim, mas a Crimeia é anexada em 2014. Na crise atual, iniciada em meados de novembro, não houve violação das fronteiras da Ucrânia. A Crimeia foi anexada ilegalmente e infelizmente tem-se pouca visibilidade do que acontece por lá. Não é um território onde os parlamentares podem ir. 

As manobras militares de 2021 são, ao meu ver, manobras de dissuasão organizadas pelo Kremlin com o objetivo de anular a realização da plataforma da Crimeia que o presidente Zelensky organizou no verão de 2021, ocasião em que ele reunia seus amigos ocidentais para falar novamente sobre a Crimeia, pois a Crimeia não tendo em seu território uma guerra aberta e “quente”, fala-se dela cada vez menos.

Fala-se do Donbass, onde se atira todos os dias. Fala-se menos da Crimeia. O presidente Zelensky queria reposicionar a Crimeia na agenda da diplomacia internacional. Nesse contexto, o Kremlin e o presidente Putin começaram manobras militares em abril de 2021 nas fronteiras ucranianas.

Isso funcionou razoavelmente bem porque eu percebi um verdadeiro medo dos ucranianos sobre sua capacidade de manter a plataforma no sentido de que os dirigentes ocidentais não eram muito favoráveis a se deslocar até lá nessas condições.

Uma certa quantidade de ministros foi enviada à Ucrânia para a plataforma da Crimeia, mas não eram chefes de governo, nem chefes de Estado ou sequer ministros de primeiro plano.

Na metade de novembro, depois que Joe Biden e Volodymyr Zelensky se encontraram no dia 1o. de setembro em Washington e seu comunicado oficial não fala de 100 mil militares homens russos na fronteira desde abril, nem de adesão da Ucrânia à OTAN… Na metade de novembro, o presidente Joe Biden decide fazer declarações muito alarmistas, muito preocupantes, muito duras em relação a essa presença militar nas fronteiras ucranianas, quando na verdade ela está lá desde o mês de abril de 2021. Esse abalo diplomático fez com que chegássemos à crise hoje.

A partir do momento em que Joe Biden abordou a questão de maneira histérica em meados de novembro, o presidente Putin entrou no jogo e decidiu emitir uma certa quantidade de exigências em meados de dezembro, ou seja, um mês depois das negociações entre Biden e Putin, principalmente o não acesso da Ucrânia à OTAN.

Esse diálogo de surdos entre Biden e Putin foi conduzido por três meses até a metade de janeiro sem a Europa, sem a Ucrânia. Joe Biden declarou que ele consultava e prestava contas aos europeus e aos ucranianos. A realidade era outra.

Qual era a realidade?

Parece-me que a realidade era uma decalagem no tempo de um relatório que não estava completo. Eu não estou na célula diplomática do presidente da República, entao nao posso confirmar, mas a partir da minha análise e de minhas fontes, o que eu compreendo é que o gabinete de Joe Biden prestava contas aos europeus e aos ucranianos com dois ou três dias de atraso e com elementos que não estavam completos.

Então houve falta de transparência de Joe Biden em relação aos diálogos com Putin?

Sim, claramente.

Você disse numa entrevista que o Ocidente “descobriu” agora o que a Rússia faz há muito tempo nas fronteiras com a Ucrânia. Por que não se falou suficientemente dessa questão?

Foi falado. A imprensa francesa relatou a presença militar russa no mês de abril, mas é um epifenômeno, é regular. A Ucrânia vive assim desde 2014. Eu não digo que é normal. Eu digo que é habitual. Ainda mais, houve a crise do Afeganistão no verão (boreal) de 2021, que provocaram o esquecimento da crise ucraniana. Uma atualidade “caça” a outra.

Se a agitação em torno da Ucrânia é mantida desde o mês de novembro, é porque há alguém que cria um frisson de modo sistemático para que a imprensa fale. Na França, há as eleições presidenciais. A imprensa francesa tem muitas coisas a gerir. Na Alemanha, há a instalação de um novo governo, que acaba de ser formado a partir de eleições e uma nova coalizão. Na Itália, houve eleições. No Reino Unido, foi a “partygate” de Boris Johnson, com as festas que ele promoveu durante o confinamento. Então é um momento em que a imprensa europeia tinha outras coisas para fazer.

De que maneira os ucranianos ou os seus interlocutores percebem o conflito nesse momento?

Eles não têm um conflito nesse momento. Eles tampouco tinham conflito no mês de novembro. Eles ficaram perplexos ao descobrir que as informações do seu serviço de inteligência não dispunham das mesmas informações que os de Joe Biden. Em todo caso, eles não sentiam um ataque iminente. Eles ainda não têm. Em nenhum momento eu ouvi os ucranianos dizerem “temos certeza de que a Rússia vai atacar”. Em nenhum momento.

Para eles, o comportamento da Rússia nas fronteiras é rotineiro: as manobras militares, um grande número de militares presentes, isso não é novo para eles. Então, no início, havia um efeito de choque. Depois, isso lhes permitiu novamente de falar do Donbass e da Crimeia. Então aproveitaram a situação para falar de novo dos conflitos que lhes opõem aos separatistas e à Rússia. Na sequência, perceberam que essa histeria sobretudo lhes prejudicava. O país que sofreu mais nessa crise diplomática, porque não houve crise militar propriamente dita, é a Ucrânia. Sua imagem e sua economia não vão se levantar tão facilmente dessa crise.

O segundo bloco que mais sofreu nessa crise é a Europa, com o preço do gás, que foi multiplicado por 6. A desestabilização dos europeus quando os alemães saiam de uma eleição, a França entra e a Itália está em curso. E a discórdia que os europeus tiveram a impressão de ter em termos de comportamento a adotar perante a Rússia.

A população ucraniana ou os seus interlocutores querem entrar na OTAN e na União Europeia?

Sim. Claramente é uma vontade dos cidadãos e dos políticos ucranianos há muito tempo. A crise de 2014, o Maïdan (protestos em 2013 após a decisão do governo ucraniano de interromper as negociações de adesão à UE, sob pressão russa), é um revelador da vontade dos ucranianos de entrar na União Europeia. Então há uma real vontade dos ucranianos de aderir a instâncias como a OTAN e a UE.

Mas segundo o que a senhora diz, não é essa a razão do conflito atual?

Claramente nao.

É apenas um discurso?

É apenas a manipulação de informação da parte dos Estados Unidos. E do fato de que a Rússia se aproveitou e jogou lenha na fogueira.

Bandeira da Ucrânia
Bandeira da Ucrânia. Foto: AFP/Scanpix


De que maneira a senhora avalia a condução dessa crise pelo presidente Zelenski?

Globalmente, ele permaneceu fora do debate. Seu ministro das Relações Exteriores se expressou bastante. Ele, um pouco menos. Ele dialogou com europeus e americanos.

Agora, ele está bastante presente mas penso que não reagiu a tempo para desencadear uma desescalada diplomática, o que leva a Ucrânia a uma crise econômica. Ele não previu a retirada dos diplomatas. Ele não antecipou que uma forte inflação na Ucrânia vai gerar um efeito devastador, um “efeito tesoura”, do ponto de vista econômico.

Ele não se engajou do lado dos Estados Unidos sobre a dinâmica histérica. Ele tentou restabelecer a ordem no seu próprio país, tentando chamar sua população à calma. Alguns estão surpresos pelo fato de que ele prossegue na sua política interna e seu combate contra a corrupção como se nada estivesse acontecendo. Penso que é um pouco mais complexo do que isso.

Como avalia o comportamento do presidente Putin?

O presidente Putin é como de costume. Ele não faz grande coisa, ele observa oportunidades. Assim que há uma desestabilização interna em algum lugar, alguma oportunidade, ele se posiciona e impõe suas exigências. É seu comportamento clássico, habitual. Ele é oportunista e impõe exigências perante o ocidente através da crise que Biden provocou.

E o que busca Joe Biden ao provocar essa crise, quais são seus interesses?

Não estou na mente de Joe Biden, nem no seu gabinete. Tenho teorias, que são minhas, não do governo francês. Penso que Joe Biden estima que a Europa se emancipou demais sob Trump e que a Europa não está suficientemente presente do lado dos Estados Unidos na guerra econômica contra a China.

Então há uma vontade de recriar um bloco, um pouco como na Guerra Fria para fazer a Europa entrar do seu lado e colocá-la sob tutela diplomática. Há uma crise de inflação e o desastre do Afeganistão que é preciso fazer esquecer.

Há o fato de que os Estados Unidos e a administração Biden não estão muito contentes com Nord Stream 2 (projeto de gasoduto ligando Rússia e Alemanha) e gostariam de nos vender um pouco mais de seu gás.

Essas são as teorias que eu posso emitir nesse estado para justificar o comportamento de Biden. Ele reconheceu ou artigos de imprensa na semana passada indicam que ele manipulou informações sobre a crise ucraniana com o objetivo de evitar a guerra. Nisso, eu não acredito um só segundo. A razão não é essa porque e eles quisessem ajudar a Ucrânia não a teriam colocado de joelhos do ponto de vista diplomático e econômico.

E em relação a seus parceiros europeus e ao Reino Unido – se é que ele pode ser considerado um parceiro…

Eles estão mais próximos dos Estados Unidos do que da Europa em termos de comportamento e posicionamento.

E de que maneira vê o fornecimento de armas do Reino Unido à Ucrânia?

Mais uma vez, o objetivo é jogar lenha na fogueira e manter um frisson. Eu conversei com a embaixadora do Reino Unido em Paris. Eu lhe disse claramente que se Boris Johnson tivesse comparecido à Plataforma da Crimeia no mês de agosto talvez não teríamos chegado a esse ponto.

Se os chefes de Estado e de governo tivessem apoiado Zelensky nesse evento para falar da Crimeia no verão, talvez não chegaríamos a esse ponto porque não teria havido oportunidade para Joe Biden e a Putin de provocar a crise.

O comportamento britânico está na linha de comportamento americano, fora das discussões europeias, mesmo se o diálogo existe entre europeus e a Grã-Bretanha. Então, esse fornecimento de armas permite manter a atenção da imprensa e da diplomacia.

O presidente brasileiro visitou Putin durante o conflito. Ele envia um mau sinal?

Ele está num diálogo com a Rússia que lhe é próprio. O presidente Macron e o chanceler Scholz também foram à Rússia. Eu não penso que seja um sinal ruim. Ao contrário, ele mostra que o diálogo existe e é possível, que ele é mantido. Como não estamos em guerra, estamos na resolução diplomática do conflito.

Por outro lado, o presidente brasileiro não previu ir à Ucrânia, justificando que sua viagem não tinha nada a ver com ela.

(risos) Diante dessa escolha política, sua proximidade política com Putin justifica sua viagem. Eu não sei se há uma proximidade entre o Brasil e a Ucrânia em termos diplomáticos. Por outro lado, há um afrontamento entre o Brasil e a Ucrânia em relação à agricultura e à exportação da agricultura mundialmente. Isso não deve ser esquecido e negligenciado.

O que deve ser feito para resolver essa crise?

Ela vai se resolver sozinha sob a condição de que os Estados Unidos parem de se meter de maneira sistemática. O diálogo está estabelecido entre a Europa e a Rússia. Putin se valorizou na cena internacional e diante de sua população se mostrando como um homem forte, como ele gosta de fazer.

Ele emitiu exigências. A Europa fez contrapropostas e ele retira parcialmente suas tropas. O diálogo vai continuar e vai-se encontrar uma saída para essa crise através de certos pontos evocados pelo chanceler Scholz e o presidente Macron com Putin e Zelensky.

Como essa crise não veio de lugar nenhum, ela vai pouco a pouco desaparecer, sob condição de que se pare de manter uma histeria coletiva, mantida principalmente pelos Estados Unidos e a Grã-Bretanha.

A OTAN disse não constatar essa retirada de tropas. Para a senhora, a OTAN está mentindo?

A OTAN comunica as informações de maneira parcial. Dado o fracasso no Afeganistão, eu não tenho muita confiança na imparcialidade deles, na sua capacidade de não ser influenciados pelo discurso americano. Sua independência dos Estados Unidos precisa ser provada.

*Entrevista gravada por telefone na quinta-feira, 17 de fevereiro.