Um americano normal, típico e o guarda da esquina. Por Kakay

Atualizado em 18 de julho de 2024 às 12:02
Donald Trump após atentado em comício na Pensilvânia e o atirador Thomas Matthew Crooks. Foto: reprodução

“Já vem o peso do mundo
Com suas fortes sentenças.
Sobre a mentira e a verdade
Desabam as mesmas penas.
Apodrecem nas masmorras, juntas,
A culpa e a inocência.”

Poema Romance LI ou das Sentenças,
Cecilia Meireles

Em um primeiro momento, foi impossível não pensar no estranho e obscuro episódio da facada em Juiz de Fora. Um  ex-presidente americano, candidato dos Republicanos à Presidência dos  EUA em 2024, exibindo-se como herói, punho fechado, rosto e peito se oferecendo como alvo, apenas 10 segundos após os tiros, com a bandeira americana ao fundo e sendo segurado no alto por seguranças, parecia uma imagem montada de uma propaganda de campanha. Uma facada ianque. Mas o desenrolar das investigações indica que houve sim um atentado. O atirador, um lobo solitário, errou o alvo e atingiu, de relance, na orelha, o candidato Trump. Acertou, precisamente, a Democracia.

Tudo é assustador nesse episódio. Mas o que mais impressiona, e preocupa, até agora, é a definição do jovem terrorista que atentou contra a vida de um ex-presidente americano. A imprensa o define como um jovem dócil, sem passado de violência, gentil com os amigos, que fez um curso médio com louvor, embora muito jovem, e sem histórico de participação em atividades extremistas. Esse jovem frequentava cursos de tiro. A arma que usou, um fuzil AR-15, foi comprada pela família em uma loja regular que vende armas indiscriminadamente. Ele mantinha em seu carro explosivos, também comprados legalmente, e usava uma camiseta que fazia apologia às armas. Ou seja, um americano médio, normal.

Esse atirador, que foi morto logo após o atentado, era fruto de uma onda de extrema direita que assola o mundo. O ex-presidente, alvejado por ele, sempre desprezou a Democracia. Com recorrência, incita, pública e oficialmente, a violência. Incentivou o ataque ao Capitólio, tentou derrubar a Democracia, falou, aberta e despudoradamente, contra a legalidade das eleições nas quais ele foi derrotado, não aceitou o resultado das urnas e ainda apoiou e insuflou o golpe contra o Estado democrático de direito.

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Donald Trump após atentado em comício na Pensilvânia. Foto: reprodução

Vejam! Estou falando do ex-presidente dos EUA e não do seu seguidor tupiniquim. É nesse ambiente que florescem os “homens de bem”, frequentadores dos cultos em reverência aos deuses estranhos e que, depois, saem fortemente armados para atentar contra a vida, até de um ex-presidente da República.

Esse dramático e grave episódio me remete a outro, também da extrema direita. Em 1968, em meio à sangrenta e cruel Ditadura militar no Brasil, os generais resolveram baixar aquele que seria um dos mais terríveis golpes na Democracia: o AI-5. Conta a história que o então vice-presidente da República, Pedro Aleixo, instado a assinar o ato, negou-se. O General que o procurou argumentou que ele poderia confiar, pois a concentração de poder estaria nas mãos dos generais e que o vice-presidente conhecia bem todos eles. A resposta do Pedro Aleixo se adequa, ainda hoje, à sanha golpista da direita radical: “General, o que me preocupa não são os generais, mas os guardas da esquina”.

Os  terroristas de 8 de janeiro, o bolsonarista que matou o petista no dia do aniversário, o jovem que atirou e acertou a orelha de Trump, todos esses, insuflados pelo ódio e pela violência da extrema direita, são os “guardas da esquina” que atentam contra o Estado democrático de direito.

Remeto-me ao poeta Augusto dos Anjos, no poema Versos Íntimos:

“Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.”

Publicado originalmente na coluna de Kakay, no Portal iG
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