Por Mateus Coutinho
Passado um ano do pior ataque às instituições democráticas brasileiras desde 1988, realizado em 8 de janeiro do ano passado e que levou à depredação das sedes dos Três Poderes, em Brasília, não há nenhum registro de condenação significativa de membros das Forças Armadas que deveriam ter protegido o patrimônio público ou mesmo que participaram dos atos no dia.
Levantamento feito pelo Brasil de Fato junto a órgãos oficiais e especialistas mostra que, enquanto as investigações e condenações avançam sobre civis que participaram dos atos golpistas e autoridades do governo do Distrito Federal, militares que eram responsáveis pela segurança da Presidência da República seguem atuando normalmente e até crescendo na carreira em alguns casos.
Enquanto o Supremo Tribunal Federal (STF) já condenou civis a penas que superam 10 anos de prisão, as investigações envolvendo militares seguem sob sigilo e sem transparência até mesmo sobre as punições administrativas a que alguns foram submetidos. Além de casos de militares que perderam postos que ocupavam (mas seguem na carreira em outras funções), das punições administrativas que vieram a público até o momento há registro de penalidades brandas, como prisão por três dias e advertência, por exemplo.
A reportagem questionou as três forças, o Exército, a Marinha e a Força Aérea, sobre quais medidas adotaram em relação a militares que teriam se envolvido nos atos e as eventuais punições e investigações que foram abertas. Somente o Exército e a Marinha responderam.
Sem identificar ninguém, a Marinha informou que acompanha as investigações no STF e que abriu três procedimentos administrativos, um envolvendo um oficial da reserva que tirou foto da Praça dos Três Poderes no dia, outro aberto contra uma praça reformada que foi presa no dia 8 pela Polícia Militar e uma terceira envolvendo uma praça da reserva que foi presa preventivamente dentro do Palácio do Planalto. Segundo a Marinha, os dois primeiros procedimentos administrativos foram arquivados e, em relação ao terceiro caso, a força informou somente que a militar responde a uma ação civil pública no STF, sem dar mais detalhes sobre o andamento do procedimento administrativo e sobre a ação.
Já o Exército informou que foram abertos quatro inquéritos policiais militares e quatro procedimentos administrativos, mas que em apenas um dos inquéritos houve a condenação até o momento: de um militar, que nem deve chegar a ser preso.
Trata-se do coronel da reserva Adriano Camargo Testoni, que gravou um vídeo da Esplanada dos Ministérios no dia dos atos com ofensas a generais e ao Alto Comando do Exército, seus superiores hierárquicos.
Devido às ofensas ele foi condenado por injúria pela Justiça Militar, em novembro do ano passado, a uma pena de um mês e dezoito dias de prisão. Como a pena é menor do que dois anos e essa era sua primeira condenação, Testoni acabou recebendo o benefício da suspensão condicional da pena por dois anos. Na prática, ao invés de ficar preso, ele precisará cumprir outras medidas mais amenas, como a proibição de andar armado e de frequentar bares. “Demais apurações estão sendo conduzidas sob a fiscalização do Ministério Público com o intuito de serem submetidas aos seus juizados competentes”, afirmou o Exército em nota.
Procurado, o Ministério Público Militar informou por meio de sua assessoria de imprensa que todos os outros procedimentos que foram abertos e estavam em andamento na Justiça Militar foram remetidos ao gabinete do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, por determinação do ministro.
Apesar de o Exército não ter informado inicialmente em sua resposta à reportagem, enviada em 28 de dezembro, a imprensa revelou que dois dos procedimentos administrativos abertos levaram à punição de oficiais. Segundo revelou o portal UOL, um deles é um major que ordenou um subordinado no dia 8 a cantar o hino nacional junto aos manifestantes que depredavam o Palácio do Planalto. Por ter mentido durante a apuração do episódio, o Exército decidiu punir ele com três dias de prisão. O outro oficial recebeu uma advertência. Os nomes dos dois não foram divulgados.
Neste cenário, o envio dos inquéritos militares ao STF foi visto com bons olhos pelos especialistas, já que coloca os civis e os militares sob a mesma régua na hora de serem julgados e investigados.
Com isso, a Polícia Federal ficou responsável por investigar tanto os civis e quanto os militares envolvidos no 8 de janeiro. Ao todo, já foram realizadas 22 operações ostensivas, com buscas e apreensões, bloqueio de bens e prisões, da chamada Operação Lesa Pátria. Os casos seguem sob sigilo e, até o momento, o único militar de alta patente que se tem notícia que chegou a ser alvo de buscas e apreensões foi o general da reserva Ridauto Lúcio Fernandes, que chegou a depor à PF no dia 29 de setembro.
A suspeita é de que ele, por ter passado pelas Forças Especiais do Exército, formadas por soldados altamente treinados com técnicas de sabotagem e incentivo à insurgência popular, teria atuado para orientar alguns manifestantes a utilizar técnicas profissionais para invadir o prédio do Congresso Nacional pelo teto no dia 8.
Responsável por apresentar as denúncias ao STF, a Procuradoria-Geral da República (PGR), por sua vez, informou que todas as informações sobre o 8 de janeiro estão disponibilizadas no site da instituição. A CPI Mista do 8 de janeiro encaminhou ao órgão seu relatório final no qual pediu o indiciamento de 61 pessoas, incluindo o ex-presidente Jair Bolsonaro e cinco de seus ministros. Ao todo o colegiado pediu o indiciamento de 20 militares, da ativa e da reserva. O relatório está sob análise da PGR, que pode ou não aproveitá-lo em investigações já em andamento e a Procuradoria não confirma se algum dos nomes do relatório já foi denunciado, uma vez que a maioria das denúncias segue sob sigilo.
Ao todo, a PGR já denunciou mais de 1,4 mil pessoas que participaram diretamente dos atos no dia, sendo 1.156 pessoas acusadas de incitar os atos, 248 acusadas pela execução dos ataques e um financiador, um empresário do Paraná acusado de fretar quatro ônibus que levaram manifestantes até Brasília. Como as apurações e a maioria das denúncias ainda está sob sigilo, não é possível saber se entre os nomes denunciados há militares acusados destes crimes.
O órgão, por sua vez, afirma que até o momento foram denunciados oito agentes públicos que teriam se omitido no dia, sendo sete integrantes da cúpula da Polícia Militar do Distrito Federal e um policial legislativo do Senado. Ou seja, nenhum militar da ativa das Forças Armadas foi denunciado ao STF até o momento por uma eventual omissão que tenha ocorrido no dia. Em entrevista recente ao jornal Folha de S. Paulo, o subprocurador Carlos Frederico Santos, que coordenou o Grupo de Combate aos Atos Antidemocráticos até dezembro do ano passado afirmou que os militares podem ser enquadrados em crimes de golpe de Estado e abolição violenta do Estado democrático de Direito por omissão imprópria.
“Isso está sendo investigado, mas são investigações mais complexas. Nós não participamos diretamente das primeiras medidas relativas aos militares das Forças Armadas. O Ministério Público só foi notificado quando já estava tudo pronto”. Cabe agora ao novo procurador-geral da República, Paulo Gonet, decidir como devem prosseguir as investigações.
Comandante demitido, general promovido
O comandante do Exército na época dos ataques, general Júlio Cesar de Arruda, chegou a ser demitido pelo presidente Lula treze dias após o ocorrido, e entrou para a reserva, a aposentadoria dos militares.
O comandante Militar do Planalto no dia do ataque, general Gustavo Henrique Dutra de Menezes, por sua vez, deixou o posto pouco tempo depois, mas para assumir outros cargos e até mesmo ascender na carreira.
Ele foi exonerado do cargo em abril do ano passado um dia antes de depor à Polícia Federal nas investigações sobre o 8 de janeiro (a apuração segue sob sigilo). Ao deixar o posto, porém, ele foi nomeado para a 5ª subchefia do Estado-Maior do Exército. Passados seis meses, em novembro de 2023 ele foi nomeado vice-chefe do Estado Maior do Exército. Na prática, o cargo representa uma progressão na carreira do general.
O Comando Militar do Planalto é o órgão que tem, entre suas atribuições, “planejar, coordenar e executar as ações relativas à Guarda Presidencial e ao Cerimonial Militar da Presidência da República”. Para o professor de Teoria Política da Unesp e estudioso dos militares, Paulo Ribeiro da Cunha, a atuação do general no dia 8 indica que pode ter havido omissão e merece ser apurada a fundo.
“As investigações não estão concluídas, mas paira sob ele forte suspeição, isso é inegável. Consta que ele tinha 900 homens sob seu comando no dia”, afirma.
Além do general Dutra, um militar de alta patente que também tinha a responsabilidade de cuidar da segurança presidencial foi o general da reserva Gonçalves Dias, então chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República. Ele pediu demissão em abril do ano passado, após virem à tona vídeos dele circulando entre manifestantes do Planalto no dia da invasão.
Chefe da guarda presidencial foi para a Espanha
Outro militar cuja atuação no 8 de janeiro ganhou repercussão foi o então comandante do Batalhão da Guarda Presidencial, que é responsável pela segurança do Planalto, o coronel Paulo Jorge Fernandes da Hora.
Ele aparece em vídeo discutindo com integrantes da tropa de choque da Polícia Militar do DF que queriam prender os manifestantes dentro do Palácio do Planalto. Após o ocorrido vir à tona, ele acabou deixando o posto e o Exército chegou a informar que os fatos estavam sendo apurados. Até hoje, porém não há registro de denúncia à Justiça.
Em setembro do ano passado ele foi para a Espanha participar de um curso de Altos Estudos Estratégicos para oficiais superiores ibero-americanos no Centro Superior de Estudios de la Defensa Nacional, a principal instituição de formação militar do país europeu.Após concluir o estudo ele ainda deve atuar como instrutor do Centro.
Questionado, o Exército informou que a ida do coronel para a Espanha já havia sido oficializada em junho de 2022, ou seja, a viagem já estava definida antes dos atos de 8 de janeiro e ocorreu independente deles. A força, porém, não respondeu até o fechamento deste texto quanto tempo o coronel deve ficar na Espanha atuando com instrutor. O último salário recebido por ele que consta no Portal da Transparência é de novembro de 2023, sendo ainda um salário em dólar, que é a forma como ele recebe seus vencimentos por estar em exercício no exterior.
‘Padrão histórico’
Para especialistas, o cenário um ano após o 8 de janeiro reforça uma tendência histórica do Brasil de não punir efetivamente seus militares, sobretudo os de alta patente, mesmo quando eles aparecem envolvidos em manifestações políticas golpistas. Neste cenário, ainda que cúpula do Exército e das outras forças institucionalmente tenham seguido a Constituição e não aderido ao golpe, a impunidade de uma parcela de militares golpistas pode acabar estimulando estes grupos a, no futuro, promoverem novas manifestações.
“Infelizmente repetimos nossa história de impunidade aos militares, e como repetimos a história seguimos deixando brechas para outras tentativas dessa natureza. Quando a punição não acontece, novas tentativas vem”, afirma Ana Penido, pesquisadora do Observatório da Defesa e Soberania Nacional.
Em sua avaliação, os militares praticamente não perderam força após o episódio. Apesar de terem perdido o comando da Agência Brasileira de Inteligência, que no governo Lula não está mais vinculada ao GSI, eles conseguiram ter um ministro da Defesa, José Múcio, alinhado a seus interesses e seguem sendo os responsáveis por definir a política de Defesa do país. Mais que isso, a opinião política das Forças Armadas segue sendo considerada na tomada de decisões do governo.
“Estamos em um cenário em que pessoa escolhida para presidir o país tem que estar a todo tempo calculando os militares como uma variável, não se parte do princípio de que eles estão subordinados ao poder civil, como prevê a Constituição de 1988, parte-se do princípio que eles tem uma opinião e vão se posicionar a partir dela. Isso, por essência, é antidemocratico”, afirma a pesquisadora.
Para Paulo Ribeiro da Cunha é necessário levar em conta que o Comando do Exército não aderiu à tentativa golpista e que uma parcela significativa dos militares sabe que é necessário adotar medidas para melhorar a imagem das forças. “Temos uma instituição de fato preocupada com sua imagem, mas que também tem clareza que alguns de seus membros estão envolvidos nesse processo todo do 8 de janeiro e que será necessária alguma punição, ainda que não atinja quadros de alta patente. Infelizmente há concretamente uma dificuldade destas instituições e do governo em lidar com essa questão”, afirma.
Originalmente publicado em Brasil de Fato
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