Um ano sem Dom Tomás. Por Leandro Fortes

Atualizado em 3 de maio de 2015 às 16:43
Gigante moral
Gigante moral

Em dezembro de 2013, atendi uma ligação de um estranho que me chamava de Goiânia. Do outro lado da linha, como se já me conhecesse há tempo, o homem velho anunciou:

– Leandro, aqui é Dom Tomás Balduíno.

Não disse mais nada. Orgulhoso, percebi que ele tinha certeza que eu, jornalista, um homem de esquerda, sabia exatamente quem era – e o que significava – Dom Tomás Balduíno.

Quando a ditadura prendia, torturava e assassinava opositores e lideranças populares, Dom Tomás, um gigante moral de baixa estatura física, enfrentou a ala conservadora da igreja católica e os generais para criar, em 1972, o Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e, em 1975, a Comissão Pastoral da Terra, entidade que presidiu entre 1997 e 1999.

– Leandro, aqui é Dom Tomás Balduíno.

Eu, homem feito, repórter com quase três décadas de atuação, fiquei sem saber o que falar. Tremi.

– Leandro, preciso que você me encontre na CNBB, aí em Brasília. Você precisa me ajudar em um processo na Justiça.

Marcamos na CNBB, no dia seguinte. Ele veio de Goiânia, de carro. Esperei por longas duas horas, perambulando pelos corredores da entidade, sem saber no que pensar.

Quando ele chegou, saiu um pouco esbaforido do carro, olhou para mim, em pé, na entrada da sede da CNBB, e abriu os braços, bem humorado.

– Leandro! Foi o trânsito!

Nunca tínhamos nos vistos. Ele me abraçou, satisfeito. Eu, mais ainda.

Dom Tomás queria minha ajuda para responder, na Justiça, a uma interpelação da então senadora Kátia Abreu, então do PSD, então presidente da Confederação Nacional da Agricultura (CNA).

Com base em uma matéria minha na CartaCapital, sobre a violência que camponeses sofriam em Tocantins pelas graças de Kátia Abreu e outros latifundiários da região, Dom Tomás havia escrito um artigo na Folha de S.Paulo, em janeiro de 2013. Chamava-se “Apreensão no campo” e se iniciava assim:

“Eis o quadro: o pequeno agricultor Juarez Vieira foi despejado de sua terra, em 2002, no município tocantinense de Campos Lindos, por 15 policiais em manutenção de posse acionada por Kátia Abreu. Juarez desfilou, sob a mira dos militares, com sua mulher e seus dez filhos, em direção à periferia de alguma cidade.

O caso acima não é isolado. O governador Siqueira Campos decretou de ‘utilidade pública’, em 1996, uma área de 105 mil hectares em Campos Lindos. Logo em 1999, uns fazendeiros foram aí contemplados com áreas de 1,2 mil hectares, por R$ 8 o hectare. A lista dos felizardos fora preparada pela Federação da Agricultura e Pecuária do Estado do Tocantins, presidida por Kátia Abreu (PSD-TO), então deputada federal pelo ex-PFL.”

Eram dados de uma reportagem minha. Ele os usou para concluir o seguinte:

“Lideranças camponesas e indígenas estão apreensivas com o poder da senadora por sua atuação na demarcação de terras no Brasil.”

Conversamos por pouco mais de meia hora. Expliquei para ele o contexto da matéria e prometi enviar-lhes os documentos que possuía para ajudá-lo a responder à diligente senadora – o que fiz, por e-mail, no dia seguinte.

Dom Tomás, então, me agradeceu e abraçou. Quando dei as costas para ir embora, ele perguntou, assim, como que por acaso.

– Leandro, você é católico?

Eu dei um sorriso triste, antevendo uma decepção.

– Não, Dom Tomás, sou ateu.

Ele riu. Um riso curto, quase feliz. Agradeceu a ajuda de novo e mandou eu ir em paz.

Eu fui.

Dom Tomás Balduíno, que enfrentou generais de farda e coronéis de terras de peito aberto, tinha como arma apenas suas convicções.

Ele morreu há exatamente um ano, aos 92 anos.

Não sei que fim levou o processo de Kátia Abreu contra ele.

Mas fico feliz que ele tenha morrido antes de vê-la empossada como ministra de um governo do PT.