Um espancamento sem fim. Por Moisés Mendes

Atualizado em 28 de julho de 2021 às 23:20
Foto: Reprodução/Twitter

Originalmente publicado em EXTRA CLASSE 

Por Moisés Mendes

Espancam a deputada Joice Hasselmann todos os dias nas redes sociais. O espancamento da direita e da extrema direita se dá sob o pretexto de que ela é uma ex-aliada ressentida do bolsonarismo.

E parte da esquerda a espanca porque Joice era fã ardorosa de Bolsonaro e quase insensível ao drama de mulheres submetidas às mesmas crueldades que ela diz ter sofrido.

Há mulheres espancando Joice sem piedade no Instagram, no Twitter, no Facebook. O esporte preferido do Brasil hoje é espancar Joice Hasselmann. Duvidam da autenticidade do seu sofrimento. Duvidam da versão de que é vítima de um ataque político. Duvidam da inocência do seu marido.

A Lei Maria da Penha completa 15 anos em setembro, mas por enquanto não está ao alcance de Joice. Antes, tentam saber o que aconteceu com a deputada que acordou com sangramentos, hematomas e fraturas e não sabe ao certo o que teria ocorrido com ela.

Espancam Joice porque teria demorado a procurar ajuda médica e também porque retardou o pedido de socorro à polícia. É espancada porque até as mulheres são vacilantes na hora de socorrer inimigas políticas.

O bolsonarismo apoiado por Joice a transformou em uma mulher de quem todos desconfiam. Se fosse uma vítima comum e procurasse a delegacia errada, seria pior e continuaria sendo espancada sem que ninguém soubesse do espancamento.

Se fosse negra, pobre e moradora da periferia, poderia registrar suas queixas, retornar para casa e continuar apanhando e sofrendo, até o dia em que apareceria morta a tiros ou facadas.

Mas Joice não é uma mulher comum, é branca, poderosa, tem olhos azuis e não se sabe de quem apanhou. Joice é muito mais do que um caso policial. É um grande mistério da política a expor o caráter do Brasil em tempos de ódios, ressentimentos e vinganças.

Joice é deputada, tem imunidades, tem proteção, tem suporte do Congresso e do entorno institucional. Deve ter laços fortes com gente do sistema de Justiça. Tem relações de poder para muito além das estruturas da política.

Mas tem todo esse lastro poderoso e pode não ter nada, porque desconfia da polícia, talvez não confie no Ministério Público (dependendo de onde seu caso for parar) e sabe que não pode contar muito menos com os colegas de partido.

O Brasil desconfia de Joice e Joice desconfia de todos, principalmente da sua turma. Mas seus críticos são confrontados com uma demonstração de bravura.

A deputada enfrenta as desconfianças da imprensa, desafia a polícia a investigar o que quiser, abre o sigilo telefônico, afronta os que a atacam nas redes e corre o risco que poucos homens correriam.

Ela diz ter suspeitos do ataque e indicou seus nomes aos investigadores, mesmo sabendo que vive num ambiente político tomado de milicianos.

Joice Hasselmann contribuiu, com seu apoio apaixonado a Bolsonaro, para a construção do poder que está destruindo o Brasil. E enfrenta um drama pessoal causado por essa opção que a encaminhou em 2018 para os braços do fascismo.

Não pode contar mais com a extrema direita que um dia a exaltou e foi por ela exaltada e não conta com a solidariedade das esquerdas que ela sempre pisoteou.

Em agosto de 2019, em entrevista à revista Marie Claire, disse que dificilmente se entenderia na Câmara com defensoras do feminismo, de transgêneros e de ativistas dos direitos humanos, “porque as pautas são muito diferentes”.

Joice disse: “Não temos nada em comum além do fato de sermos mulheres”. A condição de mulher era muito pouco para integrá-la às defensoras das Marielles anônimas assassinadas cotidianamente.

Joice sempre considerou o feminismo “uma coisa cafona”, sempre desdenhou de políticas que busquem a afirmação das mulheres e sempre falou em tom de deboche da Lei Maria da Penha, que considera incapaz de proteger as vítimas de violência.

Agora, acusa homens pela violência política que diz ter sofrido. Machos com os quais ela pode ter convivido no ambiente do bolsonarismo que a inspirou politicamente e a elegeu.

A deputada afunda numa realidade que dizia desconhecer. “Nunca fui vítima de machismo”, declarou na mesma entrevista a Marie Claire.

“Machismo é uma bandeirinha boba com a qual mulheres fortes podem lidar. A mulher feminina forte sabe se impor. Com um movimento apenas, derrubo qualquer homem de qualquer tamanho que tente encostar em mim”.

A mulher feminina e forte está fragilizada. A deputada federal mais votada da história da Câmara, a loira de faca na bota, a ex-aliada da extrema direita é protagonista de um roteiro que ajudou a criar.

Joice pode ter sido vítima do machismo mais exacerbado que ela conhece bem e com o qual conviveu para chegar onde chegou.

Abandoná-la agora é cometer parte dos mesmos erros que ela cometeu. Submetê-la ao espancamento moral é tão condenável quanto massacrá-la fisicamente.

Os inimigos precisam socorrer a deputada, mesmo que ela esteja mentindo, porque seus ex-amigos bolsonaristas podem ser os seus agressores. É desoladora a situação de Joice Hasselmann.