Uma fascista no poder. Por Milton Blay

Atualizado em 16 de abril de 2022 às 18:38
Marine Le Pen
Análise sobre Marine Le Pen

24 de abril de 2022, 20:00 em Paris, 3 da tarde em Brasília. Eis que surge em todos os canais informativos da televisão o rosto do presidente eleito da França, ou melhor da presidente, Marine Le Pen, a primeira mulher chefe do estado francês. O terremoto político é sem precedentes na Europa, só comparável à invasão da Ucrânia pelas tropas de Putin.

Dentro de alguns dias, a eleita neofascista anunciará a primeira medida simbólica, de efeito muito mais nefasto que o fim do horário de verão decretado pelo capitão no primeiro dia de seu mandato. A bandeira europeia será retirada da fachada de todos os edifícios públicos.

É o início do golpe de estado contra o Estado de Direito, como bem sintetizou o constitucionalista Dominique Rousseau. Todos os democratas choram e desesperam. Os próximos cinco anos serão marcados por ataques sistemáticos à democracia e aos Direitos Humanos.

Como todos os populistas, Le Pen vai governar por medidas provisórias e, quando não for possível, apelará para o referendo popular, que prefere à democracia representativa, diante da dificuldade em ter uma maioria suficiente no Parlamento para mudar a lei máxima.

A nova presidente usará o seu primeiro referendo para incluir na Carta Magna a discriminação dos estrangeiros, através do princípio da preferência nacional. A saber : prioridade no emprego para os franceses de sangue gaulês, « pure souche », no acesso aos benefícios sociais, às escolas e universidades, à habitação social ou ainda a determinadas profissões, como acontecia com os judeus europeus. Em bom português, a xenofobia passará a ser um princípio constitucional.

Há muito Marine Le Pen abandonou a fantasia de lobo para vestir a de cordeiro. Multiplicou selfies com seus gatos, a ponto de ser « carinhosamente » chamada « la femme aux chatons », a mulher dos gatinhos. – Uma gracinha, como diria Hebe Camargo.

Desistiu de tirar a França da zona do euro, nunca mais falou em Frexit (Brexit à la francesa), e em vez de defender a impopular saída da União Europeia agora propõe fórmulas mágicas para bloquear todas as decisões do bloco que não a satisfaçam. Por isso submeterá a referendo a superioridade das leis francesas sobre as europeias, pouco importa que ela, como advogada, conheça perfeitamente o princípio de direito que estabelece a supremacia da lei internacional sobre a nacional. Ela não quer apenas mudar a França, quer mudar o próprio Direito.

Le Pen acredita numa União Europeia à la carte, rejeitando os pontos que não lhe convém: os tratados de livre-comércio, a adesão de novos países, a Europa da Defesa, o espaço Schengen de livre circulação de pessoas.

É claro que a inscrição na Constituição da primazia da lei nacional sobre o direito europeu faria da França um paria dentro do bloco, a exemplo da Hungria de Viktor Orbán. O seu programa é incompatível com a União e com os tratados europeus.

Meu amigo Phillipe Bernard, editorialista do Le Monde, escreve : « A estratégia de doçura de Marine Le Pen mascara um projeto brutal de destruição das instituições e de divórcio com a União Europeia. »

Como visto, seu modelo institucional é o recurso sistemático ao referendo como forma de contornar o Parlamento. Seu desejo é generalizar o referendo de inciativa popular sobre todos os assuntos, sem exceção, inclusive para anular leis aprovadas por deputados e senadores. Esta aliás era uma das principais reivindicações dos coletes amarelos, movimento claramente infiltrado pelos dois extremos. Porém – no caso de Le Pen há sempre um porém – para adaptar a regra aos interesses do poder ela se reserva o direito de bloquear toda proposta de referendo caso entenda que é contrária aos « interesses vitais do país ».

Além de mudar a Constituição para incluir a superioridade da lei francesa sobre a europeia, outras medidas xenofóbicas estão previstas : a mudança da lei sobre a nacionalidade e da política de imigração.

A nova regra da aquisição da nacionalidade deixará de reconhecer o direito do solo – jus solis, para adotar o jus sanguinis. Ou seja, quem nascer na França não será francês, nem terá a nacionalidade francesa quando atingir a maioridade. Só serão franceses os filhos de pais franceses. Obter a nacionalidade francesa por outra razão será um sonho impossível.

Quanto à política de imigração, as fronteiras irão se fechar, inclusive para os refugiados candidatos a asilo político. O reagrupamento familiar deixará de existir. Marine Le Pen, versão 2022, coloca em causa a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1789, o preâmbulo da Constituição de 1946 (marcada pelo fim do nazismo), e a Constituição de 1958, que instituiu a Quinta República. Tudo para alegria de um tal Vladimir Putin, ditador da Rússia e credor da líder neofascista francesa, que assim obteria um raríssimo sucesso político depois da campanha militar que poderá levá-lo aos tribunais por crimes de guerra e contra a humanidade. Terá a presidente da França em suas mãos.

Felizmente, o segundo turno ainda não aconteceu, Marine Le Pen não foi e se depender dos meus orixás não será eleita. Dia 24, dentro de uma semana, o que resta da França democrática elegerá Macron, e o país sobreviverá, evitando-se assim uma crise europeia de alta intensidade e o risco de uma guerra nas instituições e nas ruas. Inchallah!

Milton Blay é escritor e jornalista, ganhador do Prêmio Esso, com passagem pelos principais veículos do país. Atualmente vive em Paris.