Um mês dentro do grupo dos Entregadores Antifascistas: política, solidariedade e empoderamento

Atualizado em 5 de julho de 2020 às 22:45
A classe trabalhadora ganha um novo personagem coletivo: os entregadores de Aplicativo. Contra a exploração e as jornadas exaustivas de trabalho – Foto: Caio Guatelli

Publicado originalmente nos Jornalistas Livres 

Por Laura Capriglione

A manifestação dos entregadores de aplicativo, que aconteceu na quarta (1/7), foi linda de se ver. Jovens pobres, negros, moradores das franjas da cidade, super-explorados pelos aplicativos, reconhecendo-se como trabalhadores. Reconhecendo a força da União.

Em São Paulo, a manifestação incluiu um desfile de milhares de motocicletas e bicicletas pelas principais vias da cidade, encerrando na Ponte Estaiada, que fica bem defronte aos estúdios da TV Globo. Os entregadores queriam ser flagrados pelas câmeras do SP TV, queriam ser vistos!

Trata-se de uma categoria profissional profundamente ofendida pela invisibilidade em que é cotidianamente confinada. Os usuários dos aplicativos normalmente não conversam com eles, não querem saber de papo. O olhar sai da pizza e vai para a maquininha do cartão de crédito. Zero empatia. E os entregadores vão para a próxima entrega.

Na manifestação do dia 1º, foram muitos sorrisos, o ruído agudo dos motores gritando a cada acelerada, as demonstrações de perícia e equilíbrio na pilotagem da motocicleta, a visibilidade enfim alcançada, a solidariedade entre todos  — a cena mais bonita de se ver eram os pilotos de motos andando pelo asfalto abraçados aos de bicicletas, como forma de poupá-los do esforço físico de pedalar.

E o protesto alastrou-se por todo o País, tendo como principais reivindicações o aumento das taxas de remuneração dos entregadores, que têm caído vertiginosamente, e o fim dos bloqueios impostos pelos aplicativos, que na prática representam uma suspensão do entregador. Por fim, os profissionais insurgiram-se contra o sistema de pontuação de ranking, que é o que define os dias e a área em que o entregador pode atuar.

Se os aplicativos querem a todo custo convencer os entregadores de que eles são “empreendedores”, um tipo de “parceiro” dos donos das plataformas de entregas, ou até micro-empresários, o que se viu nas ruas do País foi daqueles momentos singulares, a categoria dos moto e cicloboys iluminada pela tomada de consciência coletiva de sua força política nas modernas economias capitalistas, em que ocorre a máxima exploração da força de trabalho.

Mas de onde vêm a inteligência coletiva deste movimento? Jornalistas Livres acompanharam a preparação da greve do dia 1º de julho de dentro de um grupo de whatsapp composto por Entregadores Antifascistas. Há centenas de outros grupos espalhados por todo o Brasil, e mesmo em outros países, como Argentina, Equador, Itália, Espanha.

Para chegar a uma mobilização como a que ocorreu no dia 1º, esses coletivos estão trabalhando com tenacidade. Os camaradas dos Entregadores Antifascistas, por exemplo, se consideram uma família  — eles se ajudam mutuamente (quando um está doente ou com dificuldades mecânicas ou financeiras, os outros se mobilizam para ajudar). Eles aprendem juntos, um fazendo para o outro indicações de filmes para assistir, de textos para ler. Eles elaboram planos para construir um aplicativo justo, que remunere os entregadores sem lhes aplicar taxas abusivas. Eles querem ser reconhecidos como empregados dos APPs, de modo que tenham assegurados seus direitos trabalhistas  —por isso pensam em projetos de lei.

Anarquistas, comunistas, militantes de todas as extrações da esquerda disputam a atenção dos Entregadores Antifascistas. Mas o fazem de maneira respeitosa, cada um sugerindo seus conteúdos mais legais para tentar conquistar os corações e mentes dos novos atores políticos. E, assim, motoboys aprendem, por exemplo, o que foi a Associação Internacional dos Trabalhadores, a AIT, a primeira organização criada para reunir diversas correntes do movimento operário do mundo industrializado, na segunda metade do século 19. A AIT, que teve em sua liderança figuras como Karl Marx e Mikhail Bakunin, existiu entre 1864 e 1876, mas começou a morrer mesmo logo após o fim da Comuna de Paris, em 1871.

Entre os vários eixos da intervenção da AIT constavam: solidariedade entre todos os trabalhadores e suas lutas, promoção do trabalho cooperativo, redução da jornada de trabalho de mulheres e crianças, redução da jornada de trabalho para 10 horas em todos os países, entre outras medidas. Impossível os entregadores não se identificarem com essa pauta, antiga em mais de 150 anos. (!!!) Eles, que são explorados pelos aplicativos, que os obrigam a trabalhar mais de 14 horas por dia. Eles, que recebem o equivalente a pouco mais de um salário mínimo por todo esse trabalho. Eles, que sonham com a construção de uma cooperativa para fugir das correntes de escravidão do IFood, Uber, Rappi e outras.

Cinema, livros, vídeos, textos entram nesse verdadeiro curso de formação express de militantes. Isso, além da mais do que necessária solidariedade entre jovens pobres, que sofrem acidentes, que estão expostos à violência urbana, que são assaltados e subtraídos de seus instrumentos de trabalho (motos, bicicletas e celulares), que vivem as vicissitudes de ter uma corrente ou embreagem quebrando, o pneu estourando. Os entregadores antifascistas tratam-se como uma família  — um tem de cuidar do outro, para que todos sobrevivam ao caos das ruas.

As mensagens de whatsapp colocadas acima e o que se verá a seguir constituem parte da troca de informações entre os membros do grupo dos Entregadores Antifascistas, entre os dias 1º de junho e 5 de julho de 2020. Não identificaremos os autores das mensagens, a fim de não expô-los à possível retaliação dos aplicativos, que bloqueiam sem qualquer justificativa um entregador, privando-o do pão de cada dia durante a aplicação da pena. Os APPs dizem que esse bloqueio só ocorre quando “não há o cumprimento dos Termos & Condições”, mas vários motoboys acusam as empresas de perseguição. As datas em que as postagens foram feitas também não serão mencionadas, já que várias dessas postagens repetem-se durante o período, como um Vale a Pena ver de Novo, para quem perdeu a primeira postagem. Os posts no grupo foram organizados por temas:

Solidariedade

Reprodução de Vakinha virtual, publicada no grupo dos Entregadores Antifascistas, para ajudar motociclista que sofreu acidente: os APPs não ajudam
SOS para ajudar entregador ciclista cujo pneu estourou quando ele estava no centro de SP: todos ajudam
Roubaram a moto do meu irmão!

Ver-se como classe trabalhadora e aprender juntos

Entregadores em busca de conhecimentos para fortalecer a classe trabalhadora
Construir a biblioteca dos Entregadores Antifascistas: para que todos possam aprender
A luta antifascista como resposta ao ódio à política: empatia

O hip hop como grande formador político e GoG como referência

O hip hop como grande formador político e GoG como referência

Futuro promissor é anticapitalista
Futuro promissor é anticapitalista

A experiência internacional mostra os caminhos para a vitória

A experiência internacional mostra os caminhos para a vitória

Enquanto a biblioteca física não existe, os entregadores consomem a biblioteca virtual, com 23 títulos

Enquanto a biblioteca física não existe, os entregadores consomem a biblioteca virtual, com 23 títulos, e autores tão diversos como Angela Davis, Frantz Fanon, Carlos Marighella ou Clovis Moura

Luta contra o racismo

Violência policial, necropolítica e consciência: Nóis tá indo no ato
Violência policial, necropolítica e consciência: Nóis tá indo no ato

Um motoboy colocou no grupo um vídeo mostrando o linchamento de um jovem negro havia tentado roubar um celular: Isso é ação de fascistas!
Um motoboy colocou no grupo um vídeo mostrando o linchamento de um jovem negro que  havia tentado roubar um celular: “Isso é ação de fascistas!”, condenaram os demais

Tudo isso porque esses meninos e meninas estão levando muito a sério o desafio de responder às seguintes questões, conforme síntese feita por uma entregadora:

Quem? O quê? Por quê?
Quem? O quê? Por quê?

Quanto à pergunta “Quando?”, eles respondem com a sabedoria de um oriental:

A luta não é Miojo
A luta não é Miojo

LONGA VIDA À LUTA DOS ENTREGADORES ANTIFASCISTAS!

Veja aqui outras referências culturais e políticas apresentadas no grupo dos Entregadores Antifascistas. Para pensar: