“Um pobre liberal no covil do populismo”, diz Luis Felipe Miguel sobre o trato que Guedes recebe da imprensa

Atualizado em 20 de junho de 2021 às 11:50
Paulo Guedes tenta começar o ano dando alguma satisfação ao mercado financeiro, retomando compromisso de desmonte do Banco do Brasil e do Estado – Evaristo Sa/AFP
Publicado originalmente no Facebook do autor.
Por Luis Felipe Miguel
Se não fosse tão longo, arrastado e – para ser honesto – enfadonho, o perfil de Paulo Guedes publicado na revista Piauí serviria como uma aula sobre o tratamento da imprensa ao atual governo.
O Guedes despreparado, truculento e insensível que todos conhecemos quase não dá as caras no texto. A grande questão é a permanência de um economista liberal dentro de um governo “populista”.
Sim, porque o problema de Bolsonaro não é ser antidemocrático, liberticida, com nítidas inclinações fascistas. Exceto por uma menção de passagem a suas “falas radicais” (um belo eufemismo, aliás), esta questão nem aparece nas nove páginas e meia da matéria.
O problema é ele ser “populista” – no sentido que o jornalismo brasileiro aplica à palavra, isto é, um político que julga que deve alguma satisfação aos mais pobres, nem que seja para enganá-los.
O efeito é bloquear o nexo entre a política econômica de Guedes e o autoritarismo explícito de seu chefe. Entre a violência que Bolsonaro prega e a violência do mercado, que Guedes quer ver plenamente liberada. Entre o uso da repressão e da intimidação como instrumentos privilegiados da ação do Estado e a abolição de direitos que o programa de Guedes exige.
Em suma: trata-se de negar o caráter pinochetista próprio do governo de Bolsonaro e Guedes. Um pinochetismo mitigado apenas pela manutenção do ritual eleitoral – que seria necessário abolir, é óbvio, pelo bem do “livre mercado”. Mas a reportagem da Piauí, embora dê todos os elementos, evita cuidadosamente chegar a esta conclusão.
Todo o perfil é feito do ponto de vista do ultraliberalismo econômico. Todos os entrevistados, sem exceção, sejam menos ou mais favoráveis a Guedes – economistas, burocratas, capitalistas – compartilham esta posição.
Não há nenhum questionamento sobre a validade das propostas econômicas de Guedes, apenas sobre a possibilidade delas serem implementadas de forma efetiva no atual governo.
Um pobre economista liberal no covil do populismo. A figura de Guedes ganha alguma ambiguidade porque não se sabe se ele permanece no cargo por espírito de sacrifício ou por sede de poder. Mas não há dúvida sobre a linha divisória entre mocinhos e bandidos.
O perfil fala pouco sobre Guedes – neste quesito, é na verdade bem decepcionante. Mas fala bastante sobre a imprensa brasileira.