Um testemunho do chão da fábrica sobre Otavio Frias Filho. Por André Fontenelle

Atualizado em 21 de agosto de 2018 às 13:19
Otavio Frias Filho

POR ANDRÉ FONTENELLE*

Acordei com a notícia de que morreu Otavio Frias Filho. E mesmo sem tê-lo visto há quase vinte anos, senti a tristeza das perdas para as quais o termo “irreparável” não é apenas lugar-comum.

Outros conheceram Otavio, Otavinho, OFF, muito melhor do que eu, que pude trabalhar diretamente com ele apenas durante o ano em que cuidei da página de artigos da Folha. Tantos que foram mais próximos ou tiveram convívio mais longo têm muito melhor condição de falar sobre ele. Mas o testemunho do chão da fábrica também tem seu valor; seguem, então, reminiscências menores, parcialmente distorcidas pelo tempo e pela seleção que a memória faz. Creio que aqueles que o conheceram reconhecerão o personagem em alguns detalhes.

Fui parar no nono andar no prédio da Barão de Limeira meio por acaso. Tendo entrado na Folha por concurso – iniciativa rara e maravilhosa, que proporcionou a jornalistas como eu, iniciantes e sem contatos, a oportunidade de trabalhar no maior jornal do país -, assumi a nobilíssima página 3 no final de 1996, indicado (um tanto a contragosto) no lugar do excelente colega Rogério Simões.

Eu queria trabalhar no Esporte, minha editoria “original” na Folha, de onde pedira para sair devido a uma desavença com o editor. Aos 25 anos, me sentia (e era) incompetente para uma função tão elevada quanto selecionar e editar os artigos da três e de outras páginas do jornal. Mas fora ensinado a não fugir de responsabilidades, e de qualquer maneira não era um convite, era uma ordem.

Da noite para o dia, passei a conviver com os donos do jornal e as vacas sagradas do conselho editorial, como Celso Pinto e Clóvis Rossi. Prendia a respiração quando seu Frias, ou Otavio, entravam na sala, para trazer um artigo, perguntar o que eu escolhera para publicar no dia seguinte ou no fim de semana. Suava frio nos almoços de sexta-feira com os editores (em que cada qual se esforçava para demonstrar que pensava exatamente como ele), temendo ser chamado a opinar sobre assuntos que não dominava.

Otavio, porém, demonstrava sempre confiança em mim e respaldava todas as minhas decisões. Depois de algumas semanas, aumentou meu salário (“Eu não sabia que você ganhava tão pouco”, disse com meu holerite nas mãos – eram R$ 1.900, modestos até vinte anos atrás). Eu me esforçava para cumprir as regras não escritas que me foram passadas – equilíbrio entre governistas e opositores nos artigos; evitar publicar o mesmo autor em intervalos curtos demais. Isso me rendia atritos inevitáveis. O deputado Paulo Delgado, do PT, pediu minha cabeça quando recusei um artigo (um parlamentar de esquerda pedindo ao patrão a demissão de um peão…). Hélio Bicudo protestou por que seus textos não saíam com a mesma frequência de antes. Fiz ver a Otavio que, ao contrário, Bicudo fora o autor MAIS frequente na Folha no ano anterior – um texto por mês, em média. Ele concordou que Bicudo poderia esperar um pouco mais a publicação seguinte. De alguns autores ele não gostava: lembro-me, em especial, que Guido Mantega não tinha vez na página 3 e ficava “confinado” ao caderno Dinheiro.

Ter a confiança de Otavio não quer dizer que eu não levasse broncas, quase sempre justas e educativas. Certa vez ele entrou na sala com um fax na mão. Era um artigo que queria ver publicado no dia seguinte. Fez apenas uma observação:

– Está faltando uma vírgula aqui na primeira linha. Ponha a vírgula e publique.

Peguei o fax, li o artigo e não coloquei a vírgula – ela era opcional, um adjunto adverbial curto em início de frase, e eu tinha por norma só corrigir, nos textos dos articulistas, o que realmente estivesse errado.

No dia seguinte, toca meu ramal. Era Kelly, a secretária de Otavio, me chamando à salinha. Desço ao quarto andar e, mal me acomodo, ouço:

– Professor (vocativo irônico, evidentemente), quando eu pedir para uma coisa ser feita, é para fazer. Eu não lhe pedi para colocar a vírgula?

Esta parábola contei, ao longo da carreira, a vários focas que não colocam a vírgula quando lhes é pedido…

Em outra ocasião, ligou para cobrar uma piora súbita do relatório de erros  nos artigos (sim, a Folha compilava estatísticas de erros de pontuação ou gramática por módulo; será que ainda o faz?) no espaço de um mês. Na verdade eu estivera de férias no período. Constrangido por ter que “entregar” meu substituto temporário (havia certo terrorismo em torno dessas métricas), balbuciei que não fora culpa minha. Ele se deu conta e respondeu, com muito fair play:

– Ah! Você estava de férias. Tudo bem. Esquece o que eu disse – e desligou.

Otavio era tímido como eu, e por isso despertava em mim uma identificação natural, admiração mesmo, mais do que meu temperamento permitia expressar. Era evidente que estava diante de uma inteligência muito acima da média, que enxergava o puxa-saquismo e a (relativa) mediocridade à sua volta com um misto de enfado e compaixão. Certa noite, tratava dos artigos do dia seguinte em sua sala, enquanto o aparelho de TV exibia uma entrevista de Mario Vitor Santos, ex-ombudsman da Folha (creio que no programa que Juca Kfouri tinha na TV Gazeta). Ao ouvir algum comentário do ex-subordinado, Otavio ergueu os olhos para o televisor e exclamou, como se ignorasse minha presença:

– Mas que idiota…

Todos sabiam que o jornal não era sua vocação, e que se sentia melhor escrevendo peças teatrais do que lidando com essa classe difícil que é o jornalista. Mesmo assim, era melhor que todos nós nesse ofício, constatação que até certo ponto me envergonhava. Parecia sofrer com o papel que lhe coubera na vida, de patrão e dono de jornal. Nem por isso deixava de desfrutar, com certo gosto, do poder e da influência que essa condição lhe proporcionava.

Sabia, pois eu lhe dissera, que minha aspiração era voltar ao jornalismo esportivo, minha paixão. No final de 1997, recebi um convite do Lance, jornal esportivo que estava para chegar às bancas e formava sua equipe inicial. Otavio cobriu a proposta (mesmo sem eu pedir) e prometeu que eu voltaria, em algum momento, à editoria de Esporte. Porém, um mês depois, recebi nova e irrecusável proposta do Lance. Ansioso para exercer o que julgava ser minha vocação, e sem querer leiloar meu salário, pedi audiência com Otavio. Ele me conduziu à sala do velho Frias, onde comuniquei meu pedido de demissão. Otavio se levantou bruscamente, despediu-se em tom seco e não voltou a falar mais comigo. Naquela noite, enquanto eu editava os últimos artigos sob minha responsabilidade, os “vaivéns” (envelopes de correspondência interna) já chegaram no nome de Rogério Ortega, meu sucessor. Terminou desse jeito desagradável minha curta trajetória de quatro anos na Folha.

Minha admiração, porém, não diminuiu. Só voltei a ver Otavio em uma ocasião, numa exposição de 80 anos da Folha, creio que em 2001 na Sala São Paulo (a memória pode me trair). Reconheceu-me e cumprimentou-me, simpático e tímido como sempre.

Otavio sabia distinguir um texto bom de um ruim. Por isso, jamais deixaria publicar este artigo. Com ele, sem hipérbole, morre a alma da Folha de S. Paulo.

*Jornalista, trabalhou na Folha de S. Paulo de 1993 a 1997.