Um xadrez em que ninguém move peça decisiva. Por Gilberto Maringoni

Atualizado em 6 de maio de 2020 às 19:21

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Jair Bolsonaro. (Arquivo AFP)

Os fatos estão muito quentes, mas parece estar acontecendo algo novo na conjuntura, comparável ao conto “A décima pista”, de Dashiell Hammet.

Diante de um assassinato, no qual o detetive se depara com nove evidências muito claras, a solução encontrada é inusitada, como convém às boas histórias policiais. Ao seguir cada rastro deixado na cena do crime, o personagem não chega a lugar algum. (ATENÇÃO: SPOILER!) O que leva ao assassino é o décimo, construído a partir das deduções do investigador. O quebra-cabeças da trama se monta através do descarte de todas as outras pistas. Tratava-se de ação diversionista.

ANALOGAMENTE, A NOVIDADE nas movimentações dos últimos dias é não haver novidades. No paralelogramo de forças em disputa, a resultante momentânea é igual a zero. Ou seja, há um empate ou paralisia na ação política dos diversos atores em campo.

Pela primeira vez em 16 meses, Bolsonaro perde a capacidade de surpreender. Há algumas semanas, o domingo passou a ser o dia da catarse. É o momento em que o presidente açula a malta miliciana, com insinuações golpistas claras. Não tem falhado. O indigitado possivelmente conversa com os filhos e outros celerados no sábado para planejar o pancadão da manhã seguinte.

NA NOITE DE DOMINGO, lideranças políticas acorrem ao Fantástico e espancam o führer de língua presa a não poder. De vez em quando alguém anuncia uma revelação-bomba que comprometerá indelevelmente o mandatário, como fizeram Mandetta e Moro.

Na segunda-feira, os chefes militares mandam ao distinto público uma carta enigmática, afirmando que “As Forças Armadas seguem cumprindo seu papel constitucional”. O STF, por sua vez, se vê impelido a barrar mais algum excesso autoritário. O presidente aparece novamente em público e diz que a imprensa “canalha” descontextualizou suas falas e afirma que não é nada disso e recua. Os donos do capital fazem cara de paisagem.

NÃO SE SABE SE TAL ROTINA aguenta mais uma semana. Mas sua repetição até aqui mostra que Bolsonaro está paralisado e acuado. Perdeu sua principal característica de governo: dar vazão ao seu verbo terrorista e desestabilizador. Pois Bolsonaro não consegue exercer o poder na estabilidade. Não é seu ambiente. Age como líderes extremistas faziam nos anos de implantação do fascismo na Itália e do nazismo na Alemanha. Precisa surpreender para pautar a agenda nacional e se colocar sempre na ofensiva. Sturm und drang na veia! Nessa cadência, todos os outros atores políticos tiveram de agir responsivamente às suas ações, desde o início do mandato. Ou seja, na defensiva. Isso parece estar mudando.

HÁ UM NOVO NORMAL na barbarização cotidiana brasileira. Falando sociologicamente, a superestrutura absorveu e mostra flexibilidade na contenção dos impactos políticos oriundos do Executivo. E ninguém avança uma casa sequer no xadrez do poder.

Rodrigo Maia não acolhe nenhum pedido de impeachment, o STF funciona como muro de contenção e não vai além e as FFAA investem em mensagens cifradas. A Globo bate e a oposição faz o que pode, mas o que pode não é muito. Depois do desastre dilmista, o maior partido dessa vertente perdeu discurso e ímpeto para voltar ao jogo.

MAS HÁ UMA VARIÁVEL IMPONDERÁVEL e poderosa que pode desestabilizar o novo arranjo político conquistado ad hoc.

Trata-se da curva ascendente da pandemia do novo coronavírus e a curva descendente da economia. Em ambas, há a vida de milhões de brasileiros pobres que enfrentam o alastramento da morte e o desespero do desemprego e da chantagem governista. A quebradeira de empresas vai aumentar, pela falta de crédito que deveria ter chegado por ação estatal. Esta parece parece estar propositadamente bloqueada para os de baixo.

O caos é o ambiente de Bolsonaro, como visto até aqui. A possível depredação de uma agência da Caixa, ou a eventual volta de saques em supermercados por justo desespero popular – como registrados na recessão de 1982-84 – podem servir de pretexto para uma ação repressiva séria. Ou para iniciativas terroristas de milícias diante de possível inação – deliberada ou não – das forças de segurança oficiais.O caso do motim miliciano do Ceará está fresco na memória de todos.

O EMPATE CATASTRÓFICO – para roubar o conceito gramsciano, com liberdade poética – aparenta ser momentâneo diante da hecatombe social em curso.

O melhor seria que os atores do topo da pirâmide institucional com compromisso democrático mexessem alguma peça decisiva para retirar a caneta e o diário oficial das mãos do celerado, ou para imobilizá-lo de vez. Trata-se, claro, de mero wishful thinking.

REPETINDO: por enquanto, o vetor resultante está zerado. No entanto, a tensão deste empate é avassaladora, se olharmos para baixo. E pode detonar qualquer estrutura de contenção de uma hora para outra.