Uma conversa franca com o autor do esplêndido documentário sobre Pinheirinho

Atualizado em 1 de fevereiro de 2013 às 17:03

Entrevistamos o jovem documentarista alagoano que deu voz aos sem teto do ajuntamento destruído de São José dos Campos.

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Fabiano Amorim

O Diário entrevistou Fabiano Amorim, o autor do excepcional documentário sobre a brutal e covarde destruição de Pinheirinho, o assentamento de sem-tetos em São José dos Campos, um ano atrás. A entrevista foi por email e à distância, ele em Alagoas, o Diário em São Paulo.

Fale um pouco sobre você, Fabiano.

Entrei na faculdade de Ciência da Computação em 2004 na Universidade Federal de Alagoas e concluí o curso em 2007. Em todo o período da faculdade, não me envolvi no movimento estudantil, nem em qualquer outro tipo de movimento político. Nessa época era totalmente despolitizado. Ainda na faculdade comecei a namorar com a Jaqueline, hoje minha esposa, que estava cursando Serviço Social também na UFAL. Ela sempre tentava me chamar a atenção para uma série de coisas na sociedade, mas eu não dava muita atenção a ela. Tínhamos discussões intermináveis. Ela num posicionamento mais crítico e eu num posicionamento típico do senso comum.

E depois?

Depois de formado, em 2010, trabalhei um pouco como bolsista no setor de TI (Tecnologia da Informação) da UFAL. Lá conheci algumas pessoas que gostavam de debater sobre vários assuntos da sociedade. No meio de tantos e tantos debates, me chamou a atenção a discussão sobre Cuba. No meio da discussão mencionaram que Fidel Castro fez muitas coisas ruins, mas que havia ajudado bastante Cuba e por isso era amado e idolatrado por lá. Fiquei pensando: “Como isso é possível?”.

Um dia resolvi parar e pesquisar sobre Cuba. Fiquei espantado com a história da revolução cubana. Logo, a imagem de supertirano que eu possuía em relação ao Fidel Castro foi se reduzindo. Ainda não gostava muito dele, mas também não o odiava como antes.

E então?

Ao ler sobre a revolução cubana, passei a ter conhecimento de muitos outros temas interessantes, como a União Soviética, a Guerra Fria, a crise dos mísseis (quando quase houve uma guerra nuclear), a guerra do Vietnã, a influência da Guerra fria na ditadura militar brasileira e também em todas as ditaduras da América Latina, dentre diversos outros temas. Quanto mais eu lia, mais coisas interessantes descobria. Passei a ler vários livros e a assistir vários documentários. Assisti alguns sensacionais que fizeram com que me tornasse um apaixonado por documentários. Alguns que para mim são marcantes:

* Sicko – Sobre o sistema de saúde nos EUA.

* A Revolução não será televisionada – sobre um golpe de Estado contra Hugo Chávez em 2002.

* Fahrenheit 11 de setembro – sobre vários absurdos do 11 de setembro. Ganhou até a Palma de Ouro de Cannes.

* Tiros em Columbine – sobre a falta de controle sobre as armas nos EUA.

* Super Size me – sobre um cara que comeu no McDonalds por 30 dias para mostrar os males desse tipo de alimentação.

* Guerra contra a democracia – sobre as ditaduras militares implantadas na América Latina com total apoio americano e outros temas.

* Memórias do Saque – sobre o período de grave crise que a Argentina passou na década de 90, que fez o povo se levantar contra o governo com muita força.”

O que você aprendeu com os documentários?

Os documentários, mesmo com seu pouco tempo de duração, fizeram-me enxergar coisas impressionantes sobre o mundo. Mostraram-me coisas que eu não imaginei que existissem e me impressionou o quanto um documentário pode ser uma ferramenta poderosa para ensinar as pessoas. Por outro lado, os documentários também podem ser usados de forma negativa, para manipular a percepção das pessoas, divulgando mentiras no meio de verdades de uma forma tão bem feita que poucos percebam. O documentário é uma ferramenta poderosa. Pode-se construir muita coisa e pode-se destruir também.

Após assistir vários deles, crescia bastante em mim a vontade de um dia fazer um documentário. Eu queria fazer por outras pessoas o mesmo que os autores desses documentários fizeram por mim. Eu também queria abrir a mente de outras pessoas. Mas não sabia nem por onde começar e nem conhecia ninguém que pudesse me ajudar nisso.

Chegamos então a Pinheirinho. O que levou você a fazer o documentário?

Em janeiro de 2012, estava em casa tranquilo quando vi a notícia de pessoas que estavam se armando de maneira bem improvisada. Vi reportagens relâmpago sobre o assunto. Só entendi que havia pessoas que invadiram um terreno de alguém e que a polícia queria tirá-los de lá.

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Os moradores de Pinheirinho montaram uma defesa precária, afinal não usada

Aos poucos pela internet fiquei sabendo que elas moravam lá há quase 8 anos, que eram mais de 5000 pessoas e algumas coisas a mais.

No dia 22 de janeiro, logo pela manhã, fiquei completamente espantado quando vi que 2000 policiais haviam invadido o Pinheirinho para botar todo mundo para fora. As redes sociais ferviam de postagens sobre o assunto. No site da Globo, que acessava com frequência, havia reportagens muito curtas, que explicavam as coisas de forma muito resumida. O mesmo nos portais de outras emissoras.

No youtube é que apareceram as cenas realmente terríveis. Vi cenas absurdas de violência dos policiais, os moradores fugindo de medo. Vi o trabalho do coletivo de comunicadores populares, que em dois dias fizeram muitas entrevistas e fizeram um minidocumentário chamado “Pinheirinho: A verdade não mora ao lado”. Me impressionou a capacidade de mobilização das pessoas nesse momento.

Fiquei muito triste com tudo aquilo. Passava o dia inteiro procurando pela internet novidades sobre o assunto. Eu não conseguia acreditar que uma barbaridade como aquela havia acontecido. Quando vi as casas dos moradores sendo demolidas com tudo dentro, a minha indignação cresceu muito.

Passei os dias seguintes bem triste, dormia triste e acordava triste. Aquilo aconteceu com gente que nunca vi na vida, mas me doeu demais. Já havia visto muita injustiça acontecendo, mas aquela foi a gota d’água.

Eu não conseguia suportar a sensação de impotência. Era muito doloroso ver tudo aquilo acontecendo e não poder fazer nada a respeito. É duro ser um único homem fraco contra tantos gigantes juntos.

Daí comecei a escrever no meu blog sobre isso e passei a compartilhar no facebook todas as novidades que via. Mas as pessoas não ligavam muito para isso. Poucos davam atenção.

No dia 29 de janeiro, 7 dias após o ocorrido, resolvi que ia fazer alguma coisa. A indignação que possuía dentro de mim era forte demais. Ela não ia passar apenas comentando sobre o assunto no meu blog ou postando no facebook. Foi então que resolvi que havia chegado a hora de fazer o meu primeiro documentário. Ia me dedicar o máximo que pudesse para que aquilo se tornasse realidade.

Dentro de mim havia uma angústia que precisava sair. Eu precisava pôr aquilo para fora. Eu precisava dar um grito, mas não qualquer grito. Tinha de ser um grito ensurdecedor. Esse grito ia ser o meu documentário. A partir de 30 de janeiro iniciei o planejamento do desenvolvimento do projeto.

Qual o orçamento de que você dispôs?

De início fiz um planejamento para comprar uma boa câmera, viajar até São José dos Campos e filmar por lá alguns dias. Porém estava desempregado, minhas finanças não estavam tão boas e o concurso público da UFAL que eu havia passado estava demorando muito para me nomear.

Com tantos empecilhos, me desanimei. Depois parei para pensar e lembrei que havia centenas de vídeos sobre o assunto no youtube. Havia centenas de notícias e artigos sobre isso. Eu já havia assistido documentários de pessoas que não estiveram no local sobre o qual o documentário falava e eram bons documentários. Eu só precisava levantar toda a história pra contá-la da melhor maneira possível.

Os gastos que realmente tive foram:

* um computador (PC) mais potente para gerar os vídeos: R$ 1600.

* Um microfone para fazer a narração: R$ 310.

* Cinegrafista que filmou a entrevista com Jairo Salvador: R$ 170.

* total: R$ 2.080,00

O maior gasto mesmo foi do meu tempo. Gastei tantas horas de trabalho nisso que se fôssemos contar 10 ou 15 reais por hora seria um dinheirão.

Quanto tempo você levou para fazer Derrubaram Pinheirinho?

Trabalhei de 30 de janeiro até 20 de abril. Daí me desmotivei com tanto trabalho para fazer um documentário desse porte e parei. Em 5 de julho resolvi retomar o documentário, daí não parei mais até chegar em 23 de janeiro. Pelas minhas contas é algo em torno de 9 meses e 20 dias.

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2000 policiais participaram da desocupação de Pinheirinho

Você tem planos de fazer novos documentários?

Com certeza. Há anos queria fazer documentários. Agora com a repercussão desse documentário, tenho a certeza de que vale a pena eu continuar por esse caminho.

Mas por enquanto não há nenhum documentário em mente. Tenho muitas idéias de bons documentários, mas infelizmente sou um só e não tenho como produzir todos. Em breve escolho uma das idéias e ponho em andamento.

Por enquanto tenho planos de criar mais duas versões de Derrubaram o Pinheirinho: uma em inglês e outra em espanhol, para divulgar para outros países. Creio eu que a aceitação será boa lá fora também. Pelo que vi no youtube, há pessoas de fora do Brasil acessando também o filme. Na prática essas duas versões seriam apenas a mudança de legendas e não uma “redublagem” ou coisa parecida. Estou à procura de voluntários que me ajudem a traduzir as legendas para criar essas novas versões. Procuro pessoas que queiram traduzir pelo menos uma parte do filme.

Na ‘divisão’ dos trechos do documentário, aparecem figuras históricas como Malcom X, Marx e Ghandi. O que eles representam para você

Para mim são personagens muito importantes da história mundial. Marx com seu livro O Capital influenciou diversos movimentos sociais pelo mundo que fizeram mudanças radicais na história de alguns países. Ele escreveu no século XIX, mas boa parte do que ele escreveu é bem atual.

Confesso que nunca li “O Capital”. Minha esposa foi quem o leu. Eu conheci a obra de Marx por pessoas que a leram. Nunca fui diretamente nela.

Gandhi fez coisas absurdas sem dar sequer um tapa em alguém. Pouquíssimos homens que pisaram na terra fizeram o que ele fez sem usar a violência. É uma grande referência para a humanidade.

Malcom X, junto com Luther King e outros, lutou muito pelos direitos dos negros nos EUA, numa época em que o negro era excluído até da lei. Os negros sempre tinham menos direitos. Essas pessoas não se conformavam em serem tratadas como se fossem pessoas inferiores e lutaram como puderam para mudar a sociedade.

Resumindo, admiro muito pessoas que dedicaram suas vidas para tornar a sociedade menos injusta, menos desigual, etc.

O documentário deu em mim a impressão de que você se decepcionou particularmente com a falta de ação do governo federal, dada a bandeira de justiça social do PT. É isso mesmo?

Me decepcionei com o PT há muitos anos.

Quando Lula foi eleito, era um sonho que se realizava. Tinha muita crença no PT. Achei que iam revolucionar o país.

Melhoraram muitas coisas sem dúvida. O país cresceu muito, a geração de empregos bate recordes, reduziram a pobreza, reduziram a miséria, criaram o Minha casa Minha Vida, o Bolsa Família, dentre várias coisas muito positivas.

No entanto, com o passar do tempo, a revolução social não chegou. A educação básica anda cada vez mais para o buraco. Terríveis mudanças na educação feitas por FHC foram mantidas por Lula e Dilma. Os alunos não são mais reprovados nas primeiras séries, fazendo com que muitos cheguem ao quinto ano sem aprender quase nada. Os professores são muito mal pagos, temos escolas sem estrutura, o MEC autoriza que sejam criados cursos do tipo “Conclua o segundo grau em 2 meses”, aumentaram bastante as faculdade de graduação à distância, que comprovadamente têm o ensino de qualidade baixíssima, dentre várias outras coisas.

A saúde está terrível. Houve melhoras, mas muito pequenas. O governo usa a desculpa de que o principal problema foi o fim da CPMF, mas a saúde já estava ruim durante a CPMF e não mudou quase nada depois que a retiraram. O problema da saúde nem de longe é só falta de dinheiro.

Há várias outras coisas com as quais me decepcionei com o governo do PT. Eu critico sempre, mas não deixo de reconhecer as coisas positivas que eles fizeram. É importante fazer essa ressalva.

Quanto ao caso do Pinheirinho, há duas coisas distintas: a atuação do partido e a atuação do governo federal, que é composto pelo PT e muitos outros partidos. Tanto vereadores da cidade quanto deputados estaduais do PT deram apoio ao Pinheirinho. O senador Eduardo Suplicy ajudou o Pinheirinho no que pôde. Além disso, a própria militância do partido divulgou bastante o que aconteceu lá e ajudou o pessoal do Pinheirinho no que pôde. Neste caso, a omissão terrível foi da presidente Dilma. Ela mandou representantes seus para negociar, todos contavam com a compra da área pelo governo federal, com a ajuda do governo do estado e prefeitura para regularizar, mas na “hora H” o governo federal pulou fora e disse até que nunca disseram que iam comprar.

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Suplicy ajudou o Pinheirinho no pouco que pôde

Mesmo depois que a reintegração de posse começou, o máximo que a Dilma fez foi fazer um discurso, dizendo que aquilo era uma barbárie e que eles não fariam igual. Nada mais foi feito, a não ser mandar representantes para tentar parar a operação e negociar mais.

Dois dias depois da reintegração de posse, os governos estadual e municipal, devido à repercussão que o caso teve, chegando até à Al Jazeera, emissora do oriente médio, se juntaram para pagar um auxílio aluguel aos moradores. O estado pagaria 400 reais e a prefeitura 100 reais. Quanto o governo federal deu? Zero.

Mesmo com toda a tragédia estampada por todos os cantos, com os inúmeros protestos, nem isso sensibilizou a Dilma a fazer a desapropriação da área. Isso não seria difícil de fazer. Bastaria a câmara de vereadores declarar a área como Zona Especial de Interesse Social, o que baixaria e muito o preço do terreno, o governo federal compraria a área com recursos da Caixa, fornecia algum dinheiro a mais para os moradores reerguerem as casas e depois colocava tudo como um empréstimo para pagar em 30 anos a juros baixos. Duvido muito que os moradores rejeitassem essa proposta.

O assessor da presidência do TJ, Rodrigo Capez, disse uma vez que a presidente não iria desapropriar a área de forma alguma, por medo que as diversas outras ocupações pelo país passassem a cobrar com toda força a desapropriação dos outros terrenos também. Seria algo do tipo: “Se tem dinheiro para o Pinheirinho tem para nós também”. Apesar de discordar em muita coisa do Rodrigo Capez, acho que nisso ele estava certo.

Se o PT tivesse desapropriado o terreno, num momento de tanta visibilidade do caso, marcaria um gol de bicicleta, pois por várias décadas usariam o exemplo do Pinheirinho como diferença entre a política do PT e do PSDB. Escolheram não agir e perderam essa ótima oportunidade. Como um partido pode querer levantar a bandeira da justiça social se num dos momentos de maior injustiça com tantas leis quebradas, a sua principal representante não agiu?

Por esse motivo, não tinha como fazer esse documentário sem criticar o PT, mesmo correndo o risco dos meus colegas petistas reclamarem das críticas do documentário e alguns não quererem nem divulgar por conta disso.

Para mim, não citar a culpa do PT no caso seria um grande erro.