Uma menina no Brasil. Há uma fagulha de esperança. Por Gilberto Maringoni

Atualizado em 18 de agosto de 2020 às 15:36
Feministas que lutaram pelo aborto da criança, que corria risco de vida

Publicado originalmente no perfil de Facebook do autor 

UMA MENINA NO BRASIL. HÁ UMA FAGULHA DE ESPERANÇA

CARREGO UM IMPULSO RENITENTE – acho que fruto de mais de quatro décadas de militância política – de ter certo otimismo embutido em tudo o que penso ou faço. Eu me recuso terminantemente a achar que uma situação não tem solução. Uma situação política, claro. Individualmente podemos ser vítimas fatais de violências, de doenças e de agressões de todo tipo. Podemos morrer de dor, de bala ou de tombo. Mas para a espécie, tirando o meteoro, não existem becos sem saída.

Não se trata de fé panglossiana ou de otimismo ingênuo. Um ativista tem obrigação de encontrar respostas para problemas intrincados, que muitas vezes colocam vidas em risco. A análise da realidade objetiva só tem valor se buscar ou definir soluções. Longas e palavrosas reflexões acadêmicas – cuja conclusão é a resignação com a derrota – não exibem serventia. Mesmo que a superação não seja visível de início, um diagnóstico estratégico deve ser mobilizador e/ou provocar inquietação, nunca prostração.

A FAMOSA FRASE DE MARX na “Contribuição à crítica da economia política” pode ser o mantra de todos os que estão na vida pública. É uma pequena e conhecida joia:

“A Humanidade só se propõe as tarefas que pode resolver, pois, se se considera mais atentamente, se chegará à conclusão de que a própria tarefa só aparece onde as condições materiais de sua solução já existem, ou, pelo menos, são captadas no processo de seu devir”.

É a percepção da dialética em seu viés mais sofisticado. E há a sempre lembrada intervenção atribuída a Gramsci, sobre o pessimismo da razão e o otimismo da vontade. O pessimismo não é niilismo e ele também se relaciona com sua antítese, o otimismo mobilizador, que acaba por produzir saídas em situações nas quais elas não aparecem às claras. Lembremos: Gramsci passou oito de seus 46 anos de vida encarcerado em condições deploráveis. Foi um período de intensa atividade intelectual, no qual formulou alguns dos fundamentos quase universais da ciência política.

EU ME OPONHO FRONTALMENTE A FRASES que leio aqui e ali, dizendo que o Brasil acabou, que agora vamos para a barbárie, que tudo está perdido e estamos fodidos e mal pagos, só não vê quem não quer. São grossas bobagens. São constatações inúteis.

Isso tudo vem à baila diante do caso do estupro continuado sofrido pela menina de dez anos em quase metade de sua vida. A violência resultou em uma gravidez de altíssimo risco e despertou o ódio bestial do fundamentalismo fascista. Essas feras, falsamente preocupadas com uma vida – sequer se incomodam com 110 mil –, acusaram a criança de assassina. Não preciso detalhar a história, mais do que conhecida e comentada.

Muitos amigos escrevem e difundem a noção de que esta seria a lápide que faltava a um país mergulhado nas trevas. “O Brasil acabou” é a frase da hora.

É PRECISO PERCEBER O CONTRÁRIO. A hipocrisia e a barbárie retrógrada foram derrotadas. A gravidez indesejada foi interrompida. A ameaça de morte da menina foi revertida. É urgente dizer que – em meio à violência cotidiana, em meio ao crime contra a infância e ao abuso sexual inflingido a milhares de crianças brasileiras – surgiu um ponto luminoso de Humanidade e de Ciência! O médico pernambucano e a equipe que realizou o procedimento cirúrgico, a magistrada que orientou o caso, as pessoas que foram expressar sua solidariedade em frente ao hospital e toda a corrente iluminista que se formou de Norte a Sul venceram! Nós vencemos essa guerra suja!

Estamos tão acostumados com derrotas, com tristezas e com a solidão imposta pela pandemia que às vezes nossos sentidos se embotam e não percebemos que há esperança por existir coragem e bravura. Foi dado um pequeno passo. A menina precisará de muito colo, de muito amor e de muito apoio. Sua vida foi pesadamente abalada, mas a Inteligência e a Razão prevaleceram.

O Brasil resiste e provou mais uma vez. Não é otimismo ilusório. É tensão, força e afeto. Sigamos!