Uma noite louca na praça mais louca do Brasil

Atualizado em 22 de dezembro de 2012 às 20:55

Skatistas, periguetes, atores, emos, grafiteiros, desocupados… tudo ao mesmo tempo agora na nova Praça Roosevelt

Show de burlesco no Teatro Studio 184

A princípio, pensei que havia sido sugado pelos escaninhos do inconsciente, que agora tecia mais uma de suas tramas oníricas. Enquanto caminhava sob modernas luzes de LED, vi um velhinho de bochechas rosadas conversando efusivo com um travesti loiro, com sombra dourada nas pálpebras. E que se envergava de seus quase dois metros de altura para dizer, ao plácido ancião, com um sotaque tão gutural quanto carinhoso, Agenóooor, meu amóoor, amanhã a gente conversa mais porque enquanto o senhor ganha seus tostões aí vendendo raspadinhas, eu tenho que ganhar a vida com a minha peludinha mesmo. E afastou-se gargalhando alto, após fincar seus saltos amarelos sobre o novo piso da praça Roosevelt.

O meu transe ainda se estendeu por mais alguns minutos, quando um gordinho vestido de palhaço quis me vender amendoins. Comprei um saquinho, e só quando senti sobre a língua o gosto salitrado dessa especiaria urbana, concluí: definitivamente, não era sonho.

Era, sim, uma realidade miscigenada. Tão sadia quanto vital a uma megalópole, e que só foi possível agora, à luz do século XXI. Mais precisamente, desde que as companhias teatrais Satyros e Parlapatões, em meados do ano 2000, enlevaram a histórica praça como mais um ponto de encontro entre as diversas tribos que compõe a fauna paulista. Desde então, estabeleceu-se aí um verdadeiro tratado antropológico, que reúne do emo ao punk, da perigueti assanhada ao grafiteiro, do barbudo paz e amor ao skatista alucinado, numa versão menor e mais concentrada do Baixo Augusta.

O bar Rose Velt

Com a recente revitalização da praça, os frutos dessa sociabilidade pacífica felizmente só tem se ampliado. Após uma reforma que custou R$ 55 milhões, a praça Roosevelt perdeu seu estigma de que só abrigava moradores de rua e usuários de drogas, que assim atraíam criminalidade e violência. Agora, com uma iluminação eficiente, proporciona um ambiente mais seguro, enquanto matiza o lirismo caótico típico da região central, fazendo suas árvores centenárias se mesclar, como uma pintura, à imponente arquitetura dos prédios mais antigos.

Extasiado com a possibilidade de que as pessoas agora poderiam se reunir ao ar livre, e com tranquilidade para prosear, mandei goela abaixo o último amendoim. E desci o boulevard pelas novas escadas que nivelam a praça à rua.

Tão logo pisei na calçada, o mesmo surrealismo que de início achei tratar-se de sonho, eclodia dessa vez de dentro de um bar. Sua luz meio rosada meio azul estendia-se até mim como um tapete hipnótico de fótons, convidando-me a entrar naquela taberna high-tech, de codinome Rose Velt.

O bar Papo, Pinga e Petisco

Assim que ali adentrei, me senti como que abduzido para dentro de algum filme funambulesco de David Lynch. As paredes do local também pareciam curadas por um Man Ray dos trópicos, onde vi um pedaço de piso paulista na parede ao lado de um tampão de bueiro, além de faixas de pedestre pintadas e restos retirados de calçada da própria praça após a reforma. Toda essa estupenda arqueologia metropolitana ali rebocada era ainda iluminada por lustres coloridos, que ofuscam sua luz entre o veludo verde e vermelho das cortinas, e que descem do teto adensando a atmosfera de um cabaret.

Noite de lua cheia, noite de sorte. Dito e feito. Acabei encontrando uma amiga de longa data, sentada num sofá feito sobre um pneu de trator. Colocamos a saudade e a prosa em dia, e ela estava bem inteirada sobre os dados técnicos da reforma da praça. O boulevard ganhara 260 novas árvores e um parquinho para crianças feito com material reciclado e madeira de reflorestamento. Agora com 25 mil metros quadrados, 380 deles são exclusivos aos cachorros. É o cachorródromo, ela enfatizou, explicando ser um espaço todo gramado dedicado a pessoas que possuem bichos de estimação, com bancos para os donos e bebedouro para os animais.

Fã de flores, ela ainda comentou que a Floricultura Roosevelt fora completamente modificada. Instalada agora na área coberta da praça, ficou mais bonita ao ser cercada de vidro. Mas o horário de funcionamento, lamentou depois, não é tão boêmio como eu. Funciona até as 20h.

Após a cerveja-saideira, disse que continuaria o meu tour ali pelo entorno. Novamente na rua, notei. Além do Espaço dos Satyros e dos Parlapatoes, existem hoje mais três teatros: Um e Dois, Studio 184 e o Teatro do Ator. Enquanto me desviava entre a bela cena de cadeiras e mesas ao longo da calçada, ainda ouvi, de supetão, um sujeito de óculos, pinta de intelectual, dizer a uma garota de cabelos roxos, que a reforma da praça necessitaria de um projeto paisagístico mais utilitário, com espécies de árvores mais encopadas, de modo a proporcionar locais amplamente sombreados, onde as pessoas pudessem também se sentar para ler.

Continuei caminhando, e deparei com a fachada de outros dois bares. O primeiro deles chamado Lekitsch. Com um manequim da Amy Winehouse preso numa das paredes, e boa black music ao fundo, me pareceu outro excelente local para se beber na companhia dos bons e velhos compadres. Próximo a este, o Papo, Pinga e Petisco, também conhecido como o bar do Elvis devido ao display em tamanho natural do rei do rock, todo enfeitado com luzes, logo na entrada. É uma bodega transadíssima, decorada com antiguidades, e que faz o cliente se sentir na casa da própria avó. Possui ainda um sebo nos fundos e, segundo a bonitona hostess do local, a música ambiente vem dos CDs e LPs vendidos ali mesmo.

Skatistas também são filhos de Deus

Mais adiante, observei. O cinema não tinha sido completamente varrido da memória dos frequentadores dos extintos cineclubes Bijou e Oscarito, que ali reinaram entre as décadas de 60 até meados dos anos 90. Um cartaz agora informava projeções quinzenais onde hoje está localizado o Teatro Studio 184. Há também o Sunset Boulevard, um estabelecimento especializado na venda de produções cinematográficas antigas, ideal para colecionadores de filmes raros.

Entre o complexo nicho de teatro e bares, descobri que ainda é possível dar um tapa no visual no Salão Diplomat. Por 25 mangos o corte, é um centro de estética capilar especializado em cortes masculinos, e que atende com hora marcada. E ainda divide seu espaço com uma estilosa tabacaria, onde é comum encontrar notórias marcas de cigarros e charutos importados.

Incrível, pensei, como um simples passeio numa praça pode nos proporcionar um upgrade espiritual ao absorver tantas diversidades.

Para culminar o esplendor da noite, olhei para o céu. A lua agora espraiava seu magnetismo prateado sobre a torre da Igreja Nossa Sra. da Consolação. Diante tamanha beleza, resolvi terminar a noite fazendo uma fezinha junta a tribo dos góticos, que por ali se instalam, e que naquele momento entoavam uma canção melancólica e cativante.

Confrontado mais uma vez com tanto ecletismo, em tão pequeno perímetro urbano, fiz o sinal da cruz em frente à catedral. E desejei um hare baba namastê saravá shalom amém a todos que prezam pela paz nesta cidade, advinda tão somente com o profundo respeito à diversidade alheia.

No bar Lekistch