Uma (nova) reflexão sobre a coisa julgada no Supremo Tribunal Federal. Por Lenio Luiz Streck

Atualizado em 30 de março de 2023 às 12:19
Edifício do STF, em Brasília. (Foto: Reprodução)

Por Lenio Luiz Streck

1. Para compreender o imbróglio

Recentemente, o Supremo Tribunal Federal julgou, em Repercussão Geral, os temas 881 e 885, alusivos aos limites da coisa julgada em matéria tributária, especialmente nos casos de relações tributárias de trato continuado e os efeitos oriundos dos julgamentos realizados pela corte sobre a declaração de constitucionalidade de tributos anteriormente reconhecidos como inconstitucionais em sede de controle difuso de constitucionalidade.

A decisão gera debates sobre as suas repercussões e impactos para os contribuintes, sobretudo para aqueles diretamente afetados pela decisão: empresas que possuíam sentenças transitadas em julgado nas quais havia sido declarado incidentalmente a inconstitucionalidade da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido.

Todavia, a controvérsia não se encontra restrita somente a esses contribuintes — vale dizer, inclui dentre eles grandes players do mercado— preocupados com as repercussões financeiras da decisão que entendeu que a CSLL deve ser recolhida desde 2007, quando foi julgada a ADI nº 15/DF, na qual foi declarada a constitucionalidade do tributo em questão. Também os tributaristas estão preocupados (e eu acrescento, os constitucionalistas), em face dos impactos em outros tributos. Em jogo: a coisa julgada.

A repercussão foi tão grande que dois ministros da corte se manifestaram publicamente: o ministro Barroso, responsável pelo voto vitorioso sobre o tema, concedeu entrevista aos canais da corte sobre o assunto; também o ministro Gilmar escreveu no Globo. O que disseram? O Supremo Tribunal não foi responsável por criar qualquer insegurança jurídica. Irresponsáveis teriam sido os contribuintes que decidiram não pagar a contribuição. O ministro Barroso inclusive chamou o não pagamento da CSLL por parte das empresas de “aposta”, dando a entender que o empresariado havia apostado alto e perdido.

2. Acreditar na coisa julgada é aposta?
Aqui um parêntese: fazer apostas no Judiciário? Ora, como dificilmente se sabe o modo como o Judiciário responderá a qualquer demanda, não parece haver dúvidas de que não apenas os empresários apostaram; todos apostam todos os dias. Afinal, em um país em que a Súmula 7 do STJ (para fazer apenas um exemplo) pode ser aplicada para revolver-revisar (ou não) prova de acordo com julgamentos teleológicos — inclusive monocraticamente —, a aposta assume grau de dramaticidade: o réu pode ser absolvido à unanimidade no tribunal e, depois, ser condenado em julgamento monocrático no STJ — mesmo que o tribunal de piso tenha inadmitido o REsp. E os HCs? Serão conhecidos? Serão concedidos de ofício?

Luis Roberto Barroso. (Foto: Reprodução)

Há, assim, bons (ou maus) elementos para contestar o diagnóstico do ministro Barroso: porque a aposta é cotidiana. Mas o apostador por vezes tem todos os números da rifa e mesmo assim perde. Corre sozinho e arrisca chegar em segundo lugar.

Mais. Quando se fala em coisa julgada não há que se falar em boa ou má-fé. Ao contrário. Coisa julgada transforma o preto no branco. É imputacional. Sem qualquer compromisso com a verdade. Assim, o fato é que os empresários — a quem o ministro chama de apostadores — estavam amparados em uma garantia do Estado que lhes dizia que o tributo em questão não era devido porque era inconstitucional.

Não é vermelho 23. Ou preto 15. Tinham decisão jurídica a seu favor. E desde Kelsen sabemos que Judiciário produz norma jurídica. Norma que vale até ser invalidada.

Todavia, não há dúvidas de que a questão é complexa. E por se tratar de uma questão complexa, ela merece ser analisada em todas as suas dimensões. Podem apostar (ups) nisso.

3. O Supremo efetivamente passou por cima da coisa julgada? Dois sistemas, duas respostas? E como as decisões favoráveis às empresas transitaram em julgado?
De fato, nesse assunto, aparentemente nem todos estão discutindo a mesma coisa: de um lado, há os empresários que, com as calculadoras na mão, apontam que a decisão do STF terá um impacto milionário nas contas; de outro, o STF trata o tema de maneira institucional, como uma questão de defesa da autoridade da corte e de suas decisões; e, por último, a comunidade jurídica, preocupada com o fato de as teses aprovadas em sede de repercussão geral serem amplas e não se encontram limitadas a CSLL. Como sói acontecer — e aqui está parte importante do busílis — teses aprovadas no STF e STJ sempre vão além do caso.

Primeiramente, vejamos o ponto de vista dos contribuintes. Após a Constituição, foi editada a Lei nº 7.689/88, que tratava sobre a Contribuição Social Sobre Lucro Líquido. A partir daí, empresas afetadas pelo tributo começaram a questionar a sua constitucionalidade, afirmando que esse não poderia ter sido criado por lei ordinária; apenas por lei complementar. Sustentavam também bis-in-idem, uma vez que tanto a CSLL quanto o Imposto de Renda sobre Pessoa Jurídica tinham a mesma base de cálculo — o lucro.

Sabe-se que, no Brasil, coexistem dois modelos de controle de constitucionalidade. O difuso, em que cada juiz é um pequeno tribunal constitucional, responsável por fiscalizar a constitucionalidade das leis em sua aplicação. O outro é o concentrado, no Brasil a cargo do STF. O problema é que esses dois modelos nem sempre conversam muito bem entre si.

As primeiras decisões são de 1990, propostas por Braskem, Companhia Brasileira de Distribuição (Grupo Pão de Açúcar) e outras. Venceram e muitas das decisões transitaram em julgado, desobrigando-as de pagar a CSLL.

Ponto fulcral: como transitaram? O Estado omitiu-se? Quedou-se silente? Concordou? Aguardo notícias sobre isso.

Sigo. Para falar de um elemento externo que subjetiviza mais ainda o debate (e o ministro Gilmar falou disso no seu artigo). Em livro, consta que a reestruturação da empresa Pão de Açucar se apoiou em um mote: “Corte, concentre, simplifique” e em uma decisão consciente de não pagar impostos…

Ainda bem que isso tipo de coisa não é fonte de direito. Argumentos morais não corrigem o Direito. Se o empresariado contestou a constitucionalidade do imposto, isso faz parte do jogo, mesmo que, com a vitória na Justiça, o Pão de Açúcar tenha conseguido um alívio de 9% sobre o lucro líquido da empresa. Consta que o processo original transitou em 1991.

A bem da verdade, há que se observar a posição do Supremo Tribunal sobre o assunto e essa, de fato, foi sempre a mesma: a Contribuição Social Sobre o Lucro Líquido é constitucional.

4. E os primeiros casos chegaram ao STF e a PGR não entrou com ADC
A primeira vez que a questão chegou à corte foi em julho de 1992 — portanto, posteriormente, ao trânsito da ação do Pão de Açúcar. Por meio do Recurso Extraordinário 138.284, foi reconhecida a constitucionalidade da CSLL, ao entender pela desnecessidade de lei complementar para a instituição do tributo. Depois, sucessivas vezes o STF disse o mesmo. Aqui vem um outro ponto: se havia controvérsia no resto do país, por qual razão o procurador-geral da República não ingressou com ADC? Simples. Fácil.

Para não esquecer: embora o STF em controle difuso assim tenha dito, no interior do sistema houve ações que transitaram em julgado. E essas decisões, sem rescisória, valem. Eram, pois, hígidas.

Foi somente em 2007, quase duas décadas depois da promulgação da Constituição, que o STF pronunciou-se em controle concentrado sobre o assunto, por meio da ADI nº 15, declarando a constitucionalidade da CSLL. Agora, com efeito vinculante e erga omnes. Insisto: tudo isso poderia estar resolvido se houvesse uma ADC proposta depois das primeiras controvérsias.

5. O jogo das regras ou as regras do jogo?
O julgamento aqui debatido traz, de um lado, as empresas que, valendo-se do sistema e, portanto, das regras do jogo (constitucional), obtiveram decisões favoráveis que transitaram em julgado; e, de outro, o Supremo Tribunal, que posteriormente se pronunciou em sentido contrário.

Ao que se verifica, o Fisco, desobedecendo decisões hígidas, continuou autuando as empresas que haviam conseguido essas decisões; as empresas, por sua vez, ajuizaram novas demandas contestando as autuações. E assim a “coisa” foi crescendo.

Veja-se a confusão. Mientras, o Superior Tribunal de Justiça chegou a fixar a seguinte tese: “Não é possível a cobrança da Contribuição Social sobre o Lucro (CSLL) do contribuinte que tem a seu favor decisão judicial transitada em julgado declarando a inconstitucionalidade formal e material da exação conforme concebida pela Lei 7.689/88, assim como a inexistência de relação jurídica material a seu recolhimento. O fato de o Supremo Tribunal Federal posteriormente manifestar-se em sentido oposto à decisão judicial transitada em julgado em nada pode alterar a relação jurídica estabilizada pela coisa julgada, sob pena de negar validade ao próprio controle difuso de constitucionalidade” (grifei).

O que diria qualquer empresário diante disso? O que diria Hans Kelsen? Simples. Como sentença, ou acordão, é norma, vale até ser rescindida (no amplo sentido da palavra). Está na lá na TPD.

6. Como fica o Direito?
Do ponto de vista das empresas e na opinião de grande parte da comunidade jurídica a questão estava solucionada: aquelas empresas que haviam conseguido decisões declarando a inconstitucionalidade da CSLL por meio difuso, transitadas em julgado anteriormente à decisão da questão por meio de controle de concentrado de constitucionalidade, tinham em seu favor um título judicial que lhes garantia o direito de não pagar a referida contribuição. Certo? Certo. Afinal, a Fazenda Pública possui um invejável aparato que recorre sempre. Mas se havia uma decisão do STF, como não reverteram as decisões? Eis a pergunta. Não é o empresário que vai pagar essa conta. Não houve desídia do Estado?

O problema é que o STF não concordava com essa solução. Então, o que ele fez? Buscou outra.

Tendo em vista que, mesmo com as decisões favoráveis aos contribuintes nas instâncias inferiores, o Fisco continuou recorrendo — como sempre faz —, a questão voltou às mãos do Supremo Tribunal Federal, por meio de novos recursos extraordinários. Reconhecida a repercussão geral em 2016, os Temas foram finalmente julgados em fevereiro passado. Aqui, também haveria de se questionar a demora do STF para definir a RG.

A decisão do Supremo Tribunal Federal foi unânime no sentido de que “as decisões proferidas em ação direta ou em sede de repercussão geral interrompem automaticamente os efeitos temporais das decisões transitadas em julgado nas referidas relações”.

7. No pacote, falece também a rescisória?
Eis a pergunta. Bem, a decisão do STF nada fala e aponta para o contrário do conceito de coisa julgada conhecido pela tradição.

Explico melhor: por si a decisão já seria controversa, sobretudo porque já havia manifestações do Supremo em sentido contrário, como, por exemplo, no julgamento do Tema 733, em que restou assentada a necessidade de propositura de ação rescisória nos casos em que já havia decisão transitada em julgado e que posteriormente houvesse declaração de constitucionalidade ou inconstitucionalidade pela corte. Sem dúvida, esse posicionamento privilegiava a segurança jurídica. De novo a questão: uma decisão desse quilate (Tema 733) não é precedente?

8. Está abstrativizado o controle difuso?
O que parece claro é o caráter subjetivista-teleológico do voto vencedor do ministro Barroso. Trata-se, no fundo, da afirmação do realismo jurídico praticado no Brasil. A aprovação das teses se deu à unanimidade. Esperamos os votos na íntegra.

O que gerou o imbróglio foi a indevida equiparação dos dois modelos de controle de constitucionalidade. Essa circunstância possibilitou que, sob análises diversas dentro desse modelo híbrido de controle de constitucionalidade, chegasse-se a duas soluções distintas para o caso.

Isso está correto? Não. Dentro de um sistema coerente e íntegro, há uma resposta correta. Uma resposta adequada à Constituição. E, in casu, tivemos duas.

O ministro Barroso sustentou a “abstrativização do controle difuso de constitucionalidade”. Seguindo essa tese (que não é só dele), “uma decisão do Pleno do Supremo Tribunal Federal, seja em controle incidental ou em ação direta, deve ter o mesmo alcance e produzir os mesmos efeitos”. A questão é que, novamente, a Constituição não dá guarida a essa tese. A menos que se revogue o inciso X de seu artigo 52. Como já escrevi, de há muito, validade e eficácia não são a mesma coisa.

Afinal, a razão de ser do artigo 52, X, da Constituição, é justamente conferir um grau de participação democrática às decisões do STF em sede de controle difuso de constitucionalidade. Não é inútil a determinação de remessa ao Senado.

No caso dos Temas 881 e 885, o ministro Barroso voltou a referir que o STF deve se manifestar objetivamente sobre o artigo 52, X, e o papel do Senado no controle difuso de constitucionalidade, defendendo a mutação constitucional do referido dispositivo. Pergunto: fazer uma mutação ou fazer um novo texto?

9. Está abstrativizado o controle difuso?
O Brasil tem uma tentadora epistemologia do argumento de autoridade. Vem de um ministro do STF? Então, é lei. Realismo jurídico é isso. Direito será o que o Judiciário disser. Um exemplo disso são os precedentes vinculantes, sobretudo aqueles que o ministro Barroso chama de “precedentes vinculantes em sentido forte”, porque passíveis de Reclamação diretamente ao STF. Trata-se de mais um capítulo na tentativa de uma forçosa criação de uma “cultura de precedentes”, que, entretanto, não pode ser construída de maneira artificial. Afinal, um precedente não nasce precedente; ele torna-se um. Precedentes não são “poscedentes”.

O Supremo não tem o poder legislador constituinte permanente. Ao contrário do que disse Charles Evans Hughes — já citado por ministros do STF —, a Constituição não é aquilo que o Supremo diz que ela é.

10. O voto do ministro Barroso e a ponderação à brasileira
Para o ministro Barroso, não obstante a segurança jurídica possua estatura de garantia individual, ao assegurar que a lei não prejudicará a coisa julgada, a Constituição, da mesma forma, estabelece a vedação de tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente e, também, a livre concorrência, como princípio da ordem econômica. O ministro faz aqui uma curiosa igualação entre coisa julgada e isonomia. Ora, concessa venia, o que foi decidido à unanimidade faz prevalecer a isonomia sobre a coisa julgada, isto é, a igualdade de condições concorrenciais e face da segurança jurídica isolada.

Afirma também que, em caso de conflito entre normas dessa natureza, impõe-se a ponderação. E, aqui, vem mais uma vez o conceito abrasileirado de ponderação. Que, como tantos juristas já mostraram, não é ponderação. É apenas mecanismo para facilitar o subjetivismo.

Dito isso, é possível afirmar que o Supremo desrespeitou a coisa julgada. Sem dizer platitude, é possível afirmar que a coisa julgada consiste em um a garantia da própria democracia.

Mas tem mais coisas: conforme referido anteriormente — e esse é o problema de o STF construir “leis gerais para o futuro” —, as teses que foram aprovadas pelo STF são mais amplas (transcendem) e não se referem exclusivamente à CSLL, abarcando todas as relações jurídicas tributárias de trato sucessivo, o que gera, sim, alto grau de insegurança sobre outras questões tributárias pendentes de julgamento.

Há, ainda, a questão da modulação dos efeitos da decisão, uma das principais controvérsias que permanecem até agora irresolutas no julgamento e sobre a qual muito já se falou. Além de tudo, há uma distinção entre irretroatividade e modulação, o que está sendo confundido a torto e a direito algures, como diz Scaff.

Também não quero deixar de lembrar que, se houvesse operado um overruling de um precedente, a decisão só poderia ter efeitos pró-futuro. Tendo em vista que a decisão foi mais ampla ainda que isso, parece óbvio que os efeitos da decisão só poderiam se dar a partir do trânsito em julgado desse último julgamento realizado. Tecnicamente é isso. Valores devidos? A partir da decisão do STF. De agora.

Sobre esse ponto específico, não houve consenso no STF. A votação foi 6 a 5 no sentido da não modulação dos efeitos; e, ainda, pendem embargos de declaração a serem julgados. Assim, não há como afirmar que a questão está sacramentada. A ver.

Originalmente publicado por ConJur

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