“Ustra vive”: o que o Brasil poderia aprender com a Argentina sobre a impunidade de torturadores da ditadura

Atualizado em 25 de julho de 2018 às 6:59
Eduardo Bolsonaro homenageia seu ídolo

POR MIGUEL ENRIQUEZ

As recentes declarações do deputado Eduardo Bolsonaro, comparando a advogada Janaina Paschoal ao coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, torturador que comandou o Doi-Codi entre os anos de 1970 e 1973, são mais um episódio da sistemática tentativa da extrema direita brasileira de reabilitar os responsáveis pela repressão durante a ditadura militar.

A primeira manifestação de Eduardo ocorreu no domingo, 22, durante a convenção do PSL, no Rio de Janeiro, que sacramentou a candidatura de seu pai, o capitão Jair Bolsonaro, à presidência da República.

“Soldado nosso não fica para trás. Não permitam que demonizem a Dra. Janaína para que ela se torne um novo Ustra”, disse.  

No dia seguinte, Bolsojúnior voltou à carga em sua conta no Twitter, colocando no balaio o juiz Sérgio Moro e o próprio Jair.

”Ustra não foi torturador, ele apenas cumpriu sua missão patriótica contra os mesmos esquerdopatas, hoje combatidos por todos os que querem um Brasil honesto, como é o caso de Janaína, Moro, Bolsonaro e tantos outros. Patriotas sempre serão demonizados pela esquerda”, escreveu.

A defesa de Ustra, falecido em outubro de 2015, aos 83 anos, acusado de ter promovido a tortura de mais de 500 pessoas e da responsabilidade por 40 mortes de presos sob sua responsabilidade, segundo a Comissão Nacional da Verdade, já havia sido assumida publicamente pela família, durante a sessão da Câmara dos Deputados, que decidiu pela abertura do processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff, em 17 de abril de 2016.

“Pela memória do coronel  Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff, pelo exército de Caxias, pelas Forças Armadas, pelo Brasil acima de tudo e por Deus acima de todos, o meu voto é sim”, afirmou Jair, ao declarar seu voto.

Desde então, as camisetas com a figura do algoz estampadas no peito tornaram-se um sucesso de vendas entre os integrantes das tropas bolsonaristas. Eles já vinham pregando a intervenção militar nas manifestações realizadas em todo o país pela derrubada da presidente e que ganharam novo fôlego durante a greve dos caminhoneiros em maio.

Impensável há poucos anos, o saudosismo em relação à ditadura e a celebração de seus esbirros são um dos saldos nefastos do golpe capitaneado pelo PMDB e pelo PSDB.

Quem não se lembra da desenvoltura com que o delegado aposentado Carlos Alberto Augusto, integrante da equipe do famigerado Sérgio Fleury, desfilava pela avenida Paulista? Também conhecido como “Carteira Preta” e “Carlinhos Metralha”, o ex-agente do Dops, capacete de aço na cabeça, era tratado com toda deferência pelos manifestantes, como se fosse um veterano da Revolução Constitucionalista de 1932.

Criminosos como “Carlinhos Metralha” e Ustra puderam continuar circulando impunemente e sem qualquer constrangimento graças ao acordão que levou ao fim do período militar, em 1985, e instituiu a anistia recíproca, isentando de culpabilidade todos os envolvidos no aparato repressor da ditadura, dos seus chefes aos agentes do baixo escalão. 

Situação bem diferente do que aconteceu em outros países que também padeceram sob o jugo de regimes antidemocráticos, como o Chile e  Argentina, que de uma forma ou outra, fizeram seu ajuste de contas, processando e condenando a longas penas de prisão seus criminosos.

Na Argentina, onde a repressão aos opositores do regime foi mais feroz, com 30 000 mortos e desaparecidos contabilizados, o acerto com o passado foi o que mais avançou.

Em 2016, nada menos de 563 agentes da repressão estavam cumprindo penas por crimes de lesa humanidade, enquanto mais de 1 100 estavam sendo processados.

As condenações não se limitaram aos bagrinhos – todos os generais ex-presidentes do regime que durou de 1976 a 1982, foram para a prisão.

Um deles, Rafael Videla, o primeiro ditador do golpe de Estado que derrubou a presidente Isabelita Perón, por exemplo, foi condenado a duas penas de prisão perpétua e morreu aos 86 anos, num presídio para presos comuns. 

Tiveram o mesmo o mesmo fim o último presidente do ciclo, Reynaldo Bignone, e seu antecessor Leopoldo Galtieri, o general que conduziu o país à  humilhação da derrota na “Guerra das Malvinas”, episódio que acelerou a derrocada da ditadura.

Boné de Ustra para seu melhor amigo

Lá, como aqui, os militares, com a conivência do poder civil, até que tentaram sair impunes. Primeiro com uma Lei de Pacificação Nacional, que concedia a auto-anistia para todos os implicados nos crimes, que foi derrubada pelo do primeiro presidente civil pós-ditadura, Raul Alfonsin, o que possibilitou a condenação do ex-chefe de governo e do alto escalão militar.

Mais tarde, em 1990, foram beneficiados com um indulto perpetrado pelo presidente peronista de direita Carlos Menen, situação que perdurou por mais de uma década. 

No entanto, a impunidade acabou com a ascensão à presidência, em 2003, de outro peronista, Néstor Kirchner, da ala esquerda do Partido Justicialista, que anulou o indulto concedido por Menen e levou centenas de militares e policiais ao cárcere.

Tamanho foi o repúdio da sociedade argentina aos principais protagonistas do regime de exceção, que nem de depois de mortos eles foram poupados. Como mostra uma reportagem do diário El País, de 18 de julho, a quase a totalidade deles está enterrada em sepulturas anônimas, em cemitérios particulares ou do interior da Argentina, sem placas de identificação.

À exceção do segundo ditador, Roberto Viola, que faleceu durante o período de indulto concedido por Menen, nenhum  dos altos mandatários fardados conseguiu ser sepultado no Panteão das Forças Armadas do cemitério de La Chacarita, em Buenos Aires, e muito menos tiveram direito às honras fúnebres tradicionalmente devidas aos chefes  militares.

Bem ao contrário, diga-se, do que aconteceu no Brasil. Aqui, chefes, chefetes e chefiados não só sobreviveram livres, leves e soltos à ditadura, como são lembrados em cidades, pontes, viadutos e praças – em todo o país há nada menos de 727 logradouros homenageando os ex-presidentes militares. 

O primeiro deles, o marechal Castelo Branco é o mais lembrado, com 232 logradouros e um município, no Paraná, além de uma das mais importantes rodovias de São Paulo. Já o  general Emilio Garrastazu Médici , que presidiu o Brasil na fase mais dura do regime, é  nome de dois municípios, um em Rondônia, o outro no Maranhão.

Seu antecessor, o marechal Arthur da Costa e Silva, que até recentemente, era o nome oficial de um elevado, na capital paulista, também conhecido como Minhocão, e de uma ponte, em Brasília, teve menos sorte que Médici e Castello Branco.

Como parte de um incipiente processo de desratização cívica, no caso do elevado, Costa e Silva deu lugar ao presidente João Goulart, deposto pelo golpe militar.

No da ponte da Capital Federal, foi substituído por Honestino Guimarães, presidente da UNE e um dos 210 desaparecidos políticos brasileiros, segundo a Comissão Nacional da Verdade. Em todo o caso, resta ao “seu Arthur”, como era chamado pelos áulicos, o consolo de continuar nominando a ponte Rio-Niterói.  

ET: A doutora Janaína Paschoal, sondada como candidata a vice-presidente na chapa de Jair Bolsonaro, diz ter ficado injuriada com a “homenagem” prestada pelo filho do mito, ao compara-la ao coronel Brilhante Ustra. “Meu sentimento foi o de ter levado um soco na cara”, afirmou a Jana. E o juiz Moro, já se manifestou?