Vacinação em massa no Brasil é alvo do “vírus do negacionismo” na era Bolsonaro

Atualizado em 9 de dezembro de 2020 às 15:38
Lula (PT) e Serra (PSDB), então presidente e governador de SP: adversários ferrenhos no plano político e ideológico, posam para divulgar campanha de vacinação em massa contra gripe, em 2008. Foto: Ricardo Stuckert (2008)

Publicado originalmente no site da Rede Brasil Atual (RBA)

POR GABRIEL VALERY

O Reino Unido foi a primeira nação ocidental a iniciar o processo de vacinação em massa contra a covid-19, nesta terça-feira (8). A Rússia anunciou que pretende vacinar 2 milhões de cidadãos até o fim de dezembro. Portugal, Alemanha, França e Argentina são países que já possuem um plano concreto para rápido início do processo. Mas no Brasil o cenário é nebuloso e padece de falta de comando. O país que sempre foi reconhecido pelo seu eficiente sistema de vacinação em massa, aprimorado com o advento do Sistema Único de Saúde (SUS), agora vive um panorama desconfortável. O governo do presidente Jair Bolsonaro atua em desacordo com a ciência e chega a fazer campanha aberta contra vacinas promissoras, em gestos de politização da pandemia.

O governo federal ignora os avanços da CoronaVac, vacina produzida pelo Instituto Butantã, em São Paulo, em parceria com a empresa chinesa Sinovac. Já o estado anuncia planos para início do processo em janeiro, mesmo ante a incerteza se haverá a aprovação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). O calendário impreciso do governo federal prevê vacinação apenas para março e leva em conta, basicamente, um composto, o da fabricante AstraZeneca, desenvolvido em parceria com a Universidade de Oxford, no Reino Unido.

A formalização de um plano do governo do estado de São Paulo, do governador João Doria (PSDB), provocou reações de prefeitos e governadores de todo o país. Os resultados dos testes finais da CoronaVac ainda precisam ser publicados, bem como a Anvisa autorizar. A Secretaria de Saúde do estado prevê a divulgação dos resultados de eficácia no dia 15 deste mês.

Questão nacional

Ainda existem problemas relacionados ao alcance de um programa de vacinação em massa tocado por um estado, sem apoio da União. “Só o governo federal pode garantir vacinação para todo o Brasil. Os governos estaduais podem falar o que falar, mas só conseguem vacina, todos, se tiver dinheiro federal apoiando. O plano do Doria não vacina metade da população de São Paulo. Sozinho, não tem dinheiro nem capacidade de produção”, explica o deputado federal Alexandre Padilha (PT-SP). A primeira fase prevê alcançar cerca de 9 milhões de pessoas acima de 60 anos até o final de março. O estado tem 45 milhões de habitantes e ainda não tem uma nova fase de vacinação em massa prevista.

Padilha lembra da última pandemia enfrentada pela humanidade, a do H1N1, entre 2009 e 2010. Na época, o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) liderou um processo amplo de vacinação. E a maior parte das vacinas foi produzida pelo Instituto Butantã. Na época, até abril daquele ano, São Paulo era governado por José Serra (PSDB). Serra e Lula eram adversários ferrenhos no campo político e ideológico. Mas o processo de imunização iniciado em março foi eficiente e não teve tons sombrios de negacionismo e politização. Dois anos antes, os dois já havia posado para foto de campanha de vacinação em massa contra a gripe.

Além da vacina produzida pelo Butantã, o país comprou outros fármacos via SUS, com antecipação de demanda. O Brasil, como resultado, foi o país com maior número de imunizados no mundo: mais de 100 milhões.

“Em 2010, Lula garantiu vacina para todos que tinham indicação. Ninguém lembra que a vacina era do Butantã. A questão também é que para bancar vacina para todos, Bolsonaro precisa liberar dinheiro. Hoje, ele está querendo retirar 35 bilhões do Ministério da Saude (22% do orçamento atual)”, explica o parlamentar.

Problema da Anvisa

A pandemia de H1N1 chegou ao Brasil em junho de 2009. Até 27 de abril de 2010, data da última atualização, o país confirmou 58.178 casos e 2.101 mortes por influenza A (H1N1). Certamente, os números estiveram tão sujeitos a subnotificação como está agora a pandemia do novo coronavírus. Oficialmente, são quase 6,7 milhões de casos de covid-19 e mais de 178 mil mortes. A temperatura da emergência nacional deveria, portanto, estar muito mais alta do que há 10 anos.

Entretanto, o combate, que deveria ter comando nacional, assim como a campanha de vacinação em massa, está regionalizado, com cada estado e município atirando para um lado. A questão da Anvisa é ainda mais delicada. O órgão é, em tese, autônomo em relação ao governo federal. Mas tem no comando do país um presidente Bolsonaro com postura contrária à ciência e à segurança dos brasileiros. E que tenta levar sua ideologia negacionista e anti-científica para dentro da Anvisa, conforme atestam suas nomeações. Além disso, desdenha da vacina como já o fez em relação à pandemia. Com o aparelhamento bolsonarista na Anvisa, sobram dúvidas quanto ao registro da CoronaVac – em caso de registro, em até onde irá seu alcance.

Hoje, o governador do Maranhão, Flávio Dino (PCdoB), iniciou conversas com o governo de São Paulo para a compra de vacinas produzidas pelo Instituto Butantã. Diante dos temores relacionados ao aparelhamento da Anvisa, Dino também entrou com uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF) para que os estados possam adquirir vacinas de forma independente do governo federal.

“Ingressei ontem com ação judicial no Supremo. Objetivo é que estados possam adquirir diretamente vacinas contra o coronavírus autorizadas por agências sanitárias dos Estados Unidos, União Europeia, Japão e China. Com isso, estados poderão atuar, se governo federal não quiser”, disse Dino.

Ação conjunta

O governador do Ceará, Camilo Santana (PT), acenou no mesmo sentido de Dino. O prefeito de Curitiba, Rafael Greca (DEM), também já acertou um pré-acordo com Doria e deve ser a primeira cidade fora de São Paulo a receber a Coronavac. Para Padilha, caso o bolsonarismo impeça a aprovação do fármaco, a reação será em cadeia.

“Se a Anvisa não aprovar, não só o Doria mas todos os governadores juntos entrarão no STF. Aprovamos uma lei neste ano que, caso surja um produto aprovado pelas agências da China, EUA, Europa e Japão, a Anvisa tem 72 horas para dar o registro. Então, qualquer ente público ou privado poderia usá-lo. Essa lei vale enquanto durar a pandemia”, explicou o parlamentar.

Padilha observa, porém, que o governo federal deve encerrar o reconhecimento da pandemia agora em dezembro. “Ou seja, pode alegar que a lei não vale mais para 2021 enquanto não tiver outro decreto presidencial. Os governadores irão judicializar. Aí, o STF vai mediar, porque a pandemia estará decretada no mundo todo, ainda, e os casos estarão crescendo no Brasil. O Executivo pode não reconhecer e essa será a briga.”

O ex-ministro é confiante de que o registro virá mesmo que por meio do conflito. “Acho que a vacina do Butantã terá o registro mesmo que pela Justiça. Só que São Paulo e vários estados dependem de verba federal. Por isso, queremos aprovar no Orçamento de 2021 um fundo para isso. Já aprovamos a parte que obriga vacina para todos no Senado. É um caminho.”