Vale dificulta reparação às vítimas de Mariana. Por Cida de Oliveira

Atualizado em 12 de novembro de 2019 às 12:22
Vale. (Photo by Miguel SCHINCARIOL / AFP)

Publicado originalmente no Rede Brasil Atual

POR CIDA DE OLIVEIRA

Tudo vai bem na publicidade da Fundação Renova, criada para gerir a política de reparação dos danos incalculáveis do rompimento da barragem de Fundão, em Mariana, em 5 de novembro de 2015, que matou 19 pessoas e contaminou toda a bacia do rio Doce. As diretrizes da reparação, traçadas pela fundação com a participação de mais de 70 organizações, envolvem cerca de 7 mil pessoas e dezenas de ONGs, instituições e universidades “que buscam, todos os dias, as melhores soluções para os complexos problemas existentes”. Entre os resultados que vão surgindo, as primeiras casas de Bento Rodrigues que começaram a ser erguidas em julho passado – três anos e oito meses após o rompimento. Paralelamente, as obras de infraestrutura avançam em Paracatu de Baixo e, em Gesteira, o terreno foi comprado.

Ainda segundo a Renova, a condição da água do rio Doce voltou ao nível de antes do rompimento e pode ser consumida depois de passar por tratamentos convencionais, o que pode ser constatado por mais de 6 milhões de dados coletados no monitoramento do rio, todos disponíveis para consulta e pesquisas. Por meio de convênios com pesquisadores, universidades e ONGs, a fundação monitora a biodiversidade em toda a bacia. E 680 produtores rurais estão engajados na restauração florestal e recuperação de nascentes.

Ao longo de toda a bacia, as indenizações e auxílios financeiros atingiram R$ 1,8 bilhão em agosto, beneficiando cerca de 320 mil pessoas. As ações de reparação e compensação movimentaram cerca de R$ 6,7 bilhões.

“Há muito trabalho sendo feito e muito a fazer. Reafirmamos nossa convicção de que o melhor caminho é o do diálogo, da mediação e da negociação. É um caminho novo para muitos e que, pelas dificuldades, tem exigido correções ou soluções inéditas criadas em conjunto. Mas acreditamos que é desta forma que uma nova realidade para a bacia do Rio Doce deve ser construída: com a participação de todos”, termina assim a carta da Renova às comunidades de Mariana e Bacia do Rio Doce.

De acordo com o Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), porém, não é bem assim. O acordo que levou, entre outras coisas, à criação da Renova, foi feito sem a participação do Ministério Público Federal e estadual, das defensorias públicas e, o mais grave: sem a participação dos atingidos.

“Esses programas foram construídos de gabinete, não a partir das necessidades dos atingidos. Por causa disso o MPF ingressou com uma ação muito grande, no valor de R$ 155 bilhões em indenizações. O MPF, o estadual e as defensorias fizemos acordos com a Vale e com a BHP para modificar o termo de ajustamento de conduta para trazer os atingidos para os processos de reparação. Existe uma disputa muito grande em torno do conceito de atingido, porque modifica a questão das indenizações. A Vale e a BHP têm a tendência de reduzir o conceito, dividir os atingidos entre direto (que teve a lama no jardim de casa) e indireto (teve uma atividade econômica prejudicada”, disse o promotor de Justiça André Sperling Prado, integrante da força-tarefa que atua no caso, em entrevista à web rádio da Diretoria de Imprensa do MPMG.

Todos são atingidos

Para o MPMG essa distinção não existe. São atingidas todas as pessoas que tiveram seu modo de vida modificado, seu modo de produção e renda prejudicados, mesmo as que tiveram aspectos religiosos prejudicados. “Há tribos indígenas, os Krenak, que consideravam o rio Doce uma entidade, uma divindade. E o rio está destruído. Até a religiosidade das pessoas pode ser atingida. Há uma gama enorme de atingidos que lutamos para que eles sejam reconhecidos como atingidos e tenham seus direitos, que foram violados, reparados”.

De acordo com o promotor, os acordos de reparação dependem de uma perícia ao longo do rio, extremamente cara e complexa, que por sua vez depende da oitiva das vítimas. Até agora foram contratadas três entidades para trabalhar nessas perícias – o que pode ser considerado uma grande conquista: o reconhecimento da assessoria técnica aos atingidos, escolhidos pelos próprios atingidos.

“Trata-se de um grupo de profissionais que atua ao lado dos atingidos, para que esses processos sejam construídos com um mínimo de paridade, de igualdade, em relação a essa entidade muito poderosa que é a Renova, controlada por uma das duas maiores mineradoras do mundo”.

A dificuldade nesse processo, porém, começa com o déficit de assessorias. Dos 21 territórios existentes de Mariana até o litoral do Espírito Santo, foram contratadas assessorias para Mariana, Barra Longa, Santa Cruz do Escalvado, Rio Doce e São José do Xopotó – esses três municípios têm a mesma assessoria. Há disputas para que outras não sejam contratadas porque nesses locais os atingidos estão mais empoderados e questionam a Renova quando há violações.

Em casos assim, conforme o promotor, que a fundação tem se retirado das mesas de negociações. “Se recusa, diz não há um clima para negociar. Como uma fundação foi criada para o processo de reparação e não está em campo efetivamente para conversar com os atingidos? Essa é uma relação que precisa ser modificada. A fundação precisa entender que precisa dialogar com os atingidos, e que é normal que os atingidos estejam revoltados nessa altura do campeonato, por que afinal já faz quatro anos do rompimento e tem muitas pessoas que ao longo desses quatro anos não receberam absolutamente nada, nem um pagamento emergencial, um auxílio financeiro emergencial”.

“A Vale e a BHP vem tentando, insistentemente, desidratar esses processos de assessoria técnica, transformado em projetos menores. Por que onde há assessoria técnica, há um enfrentamento qualificado pelos próprios atingidos à técnica perversa da Renova, que tem uma dificuldade grande de conversar com os atingidos quando enfrenta resistência”.

Vida piorada

No domingo (3), integrantes do Movimento dos Atingidos por Barragem (MAB) se reuniram em Mariana para recordar os quatro anos do rompimento da barragem de Fundão. De acordo com o dirigente Guilherme Camponez, a bacia do rio Doce, atingida pelo rejeito de minério com o rompimento da barragem, tem hoje uma piora nas condições de vida de seus moradores. “Há um aumento considerável de doenças respiratórias, de pele, depressão e suicídio, sem contar o agravamento do desemprego na região”.

“Foram muitas promessas não cumpridas. A Samarco afirmou que a nova Bento Rodrigues estaria construída em 2018, e até agora nada. Além disso, ainda existem mais de 400 famílias desabrigadas por conta desse crime. Nenhum reassentamento coletivo foi feito. E isso é produto da negação permanente de participação dos atingidos no planejamento da reparação dos atingidos. Atualmente, cerca de 48% dos atingidos sequer são reconhecidos pela Renova”, denunciou.

O ato do MAB reuniu ainda vítimas de Brumadinho, atingidas pelo rompimento da barragem do Córrego do Feijão, em 25 de janeiro. “Se a gente olhar, a atuação da Vale na bacia do rio Doce é a mesma na bacia do Paraopeba, de protelar a reparação, de negar a participação dos atingidos, de negar o reconhecimento aos atingidos e atingidas. O que mudou de lá pra cá foi que os atingidos se organizaram, acumularam na luta e impuseram outro tipo de resistência lá em Brumadinho”, disse Ana Galeb.