‘Vamos ao motel?’: denúncias revelam terror sexual nas forças de segurança

Atualizado em 17 de julho de 2025 às 11:38
Policiais militares. Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil

Um levantamento revela um cenário alarmante de assédio sexual dentro das forças de segurança no Brasil. Policiais militares, civis e integrantes das Forças Armadas denunciaram abusos cometidos por chefes e colegas de trabalho. As denúncias mostram que o terror sexual não está restrito a delegacias ou viaturas, mas também ocorre em batalhões e quartéis de todo o país.

Policiais femininas receberam de chefes e colegas de trabalho frases como: “Você é muito bonita. Deveria largar o seu noivo para ficar comigo.”; “Que delícia imaginar você só de calcinha e sutiã com a arma ao lado.”; e “Vamos nos encontrar em um motel?”

O UOL analisou 107 denúncias feitas nos últimos 15 anos, com base em registros do STJ (Superior Tribunal de Justiça), STM (Superior Tribunal Militar), tribunais estaduais e corregedorias. O levantamento constatou que, a cada quatro agentes denunciados, apenas um foi condenado.

No total, 51 agentes foram denunciados, 22 se tornaram réus, 12 foram condenados e 10, absolvidos. Em quase todos os casos, o agressor ocupava cargo superior ao da vítima.

Mais da metade dos condenados já havia sido denunciada por outras mulheres, com relatos de abusos contínuos por até cinco anos. Especialistas e juristas destacam que a impunidade se fortalece porque os casos são apurados e julgados dentro das próprias instituições.

“Quem investiga os oficiais nas corregedorias da PM são os próprios oficiais. E, quando uma policial revela o problema, ela passa a ser perseguida, porque existe uma proteção institucional”, afirma Francisco José da Silva, sargento aposentado da PM-SP e coordenador de direitos humanos da Federação Nacional das Entidades de Praças.

Em 27 casos, vítimas relataram perseguições institucionais após denunciarem os abusos. Uma investigadora da Polícia Civil disse que sofreu assédio durante cinco anos e foi hostilizada ao ser transferida: “Quando saí da delegacia para trabalhar em outra cidade, o pessoal me recebeu como X9.”

Ela contou ainda: “Quase todos os dias, os pneus da minha moto eram cortados. Nos corredores, ouvia comentários do tipo: ‘E aí? Vai derrubar quem agora?’. Fiquei isolada.”

O delegado foi denunciado por outras duas mulheres e condenado a três anos e sete meses em regime aberto, com a pena convertida em prestação de serviços à comunidade.

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Policiais militares mulheres. Foto: Reprodução

Abandono e trauma

As consequências emocionais são devastadoras. Entre as 107 vítimas analisadas, 41 precisaram de tratamento psicológico ou psiquiátrico. Cinco tentaram suicídio. Uma escrivã de Buritizeiro (MG), que denunciou um investigador por assédio sexual e moral, desmaiou no banheiro da delegacia após ingerir remédios controlados.

Ela foi internada por três dias na ala psiquiátrica da Polícia Civil, onde relatou um novo abuso — cometido por um médico legista. O caso foi arquivado sem investigação. “Somos rotuladas como loucas e problemáticas. Enquanto isso, os abusadores seguem com as suas vidas normalmente”, desabafou.

Outro caso emblemático é o de Rafaela Drummond, escrivã de Carandaí (MG), que foi encontrada morta em casa pelos pais, dois anos após denunciar colegas por assédio sexual e moral. O caso foi registrado como suicídio e arquivado, mas motivou a criação de uma lei complementar, aprovada em dezembro de 2023, que prevê medidas contra servidores que praticarem assédio no ambiente de trabalho.

Justiça falha e penas brandas

Apesar da gravidade dos crimes, as penas variam entre 1 ano e 2 meses e até 4 anos de prisão. Em pelo menos quatro casos, há processos cíveis pedindo indenização às vítimas.

“Infelizmente, a legislação brasileira prevê uma pena muito baixa para esse tipo de crime. Isso acaba contribuindo indiretamente para que outros casos do tipo continuem ocorrendo”, lamenta Sidnei Henrique dos Santos, advogado de uma das vítimas.

Para a criminalista Maira Pinheiro, especializada em direito das mulheres, a impunidade é ainda mais comum quando os casos são julgados pela Justiça Militar.

“O militarismo tem uma Justiça própria, com regras diferentes em relação à sociedade, que favorece o corporativismo. Infelizmente, casos em que há impunidade e absolvição questionável dos acusados não surpreendem.”

“Perfume desperta o instinto animal”

Em um dos casos apurados, testemunhas relataram que um oficial afirmou que “perfume despertava o seu instinto animal”, fazendo com que tivesse vontade de “pular e rasgar a roupa” de quem estivesse usando. Mesmo assim, a sindicância questionou a vida amorosa da vítima — solteira na época — e não investigou o oficial.

Mesmo com colegas confirmando o “comportamento inconveniente” do tenente, o Ministério Público Militar não apresentou denúncia, alegando ausência de provas, apesar de o STJ reconhecer o valor da palavra da vítima em crimes sexuais.

Em outro caso, um coronel da Força Aérea Brasileira foi absolvido pela Justiça Militar em abril de 2024. Seis mulheres relataram abusos como toques nos seios e “abraços inconvenientes” disfarçados de correções na farda. O militar alegou disfunção erétil como defesa e foi absolvido por um conselho formado por quatro homens e uma mulher. Após a denúncia, ele pediu aposentadoria.