Veja como a comida de pobre prende o pobre na pobreza

Atualizado em 15 de outubro de 2017 às 11:54

 

Texto originalmente publicado no blog E-Boca Livre.

Por que alguém pode ser contra algo que “nutre”? Muitos me fazem essa pergunta, querendo dizer que minha oposição à “ração humana”- mesmo a abençoada que a prefeitura está lançando como alimento dos pobres – deve-se “apenas” a razões políticas.

Sim, as razões são políticas e humanitárias. Políticas no sentido de oposição ativa àquilo do que se discorda. Humanitárias por entender que os homens devem ser considerados iguais pelos demais. Mas há outras observações a fazer.

Entendo, como a maioria das pessoas, que comida, alimento, é forma cultural. Por isso comemos coisas que outros povos não comem e vice-versa. Nesse sentido, é identitária também. Tem quem não gosta de coentro e quem não gosta de salsinha. Mas, pense um pouco.

Só hipoteticamente se come qualquer coisa. Certamente você não comeria um patê de barata passado na torrada. Ai intervém a cultura dizendo: não coma! No entanto, você come fragmentos de barata, de formigas, de aranhas, pêlo de rato etc, no seu molho de tomate industrializado. A legislação para molho, extrato e catchup permite “um fragmento de pêlo de roedor a cada 100 g, dez fragmentos de insetos a cada 100 g” e assim por diante, numa infinidade de produtos. Não, não irá lhe matar, mas certamente se você soubesse a cada garfada iria se encher de nojo – vomitar, desmaiar, sofrer calafrios, arrepios, etc. O nojo exige a identificação do que o provoca, pois não há nojo em abstrato. Ele precisa se materializar.

Muitas vezes, “disfarçar” o conteúdo de um alimento tem sido estratégia de saúde. Por exemplo, a inclusão de pulmão bovino em produtos de merenda escolar para aumentar o consumo de ferro e combater a desnutrição infantil. Ninguém sabe, mas ele está lá, fazendo “o bem”. Esse o discurso nutricionista. Mas ele, em geral, silencia sobre os agrotóxicos excessivos (pimentão, tomate, morango, etc) e outros agentes nocivos, presentes no “delicioso” salmão, de tal sorte que não se sabe qual o conceito de saúde que persegue, pois despreza os aspectos não-nutrientes e acha que um tomate é sempre um tomate…

A forma de ração faz tudo assumir a condição de um alimento abstrato. Nada ali é identificável a olho nu. Portanto, pode conter tudo e qualquer coisa. É fácil, por desconfiança, recusar algo assim. Mas é difícil “desejar” o que é informe, mesmo que “abençoado”, pois uma refeição é diferente da eucaristia (ainda que alguns padres possam confundi-las) onde se afirma que está presente o corpo e o sangue de Cristo – alimentos do espirito e não do corpo.

As pessoas em situação de pobreza ou necessidade extrema comem qualquer coisa, é claro. Inclusive carne humana, como tantas vezes ocorreu na história. É o que se chama de desumanização, ou destituição da condição cultural humana, a que leva a fome. Tantos mendigos revirando latas de lixo para comer, o que desperta compaixão em muita gente. E comem quase de tudo.

Partir dessa premissa só é possível porque a industria e o nutricionismo, aliados, desculturalizaram o comer; ou melhor, propõem uma nova cultura da comida que não precisa ser identificada pelo comedor. Milhares de produtos chegam à prateleira do super-mercado sem que “tenham cara de comida”. São qualquer coisa que “alimenta” ou “mata a fome”. Em geral fazem mal à saúde. Mas, se fizessem “bem”, seriam a forma desejada de alimentação moderna? Há quem acredite que sim.

Prefiro pertencer ao grupo daqueles que acham que reumanizar o faminto é senta-lo à mesa, dar-lhe “comida com cara de comida”, trazendo-o para o normal alimentar da vida. Tanta gente que fala abstratamente que #comidaecultura também deveria saber disso e se manifestar a respeito.

Então, por que oferecer ao pobre algo amorfo que denuncia continuamente sua condição de excluido da mesa humana? A prefeitura acha que essa situação pode ser contornada, fazendo-se bolos, sopas, etc. Por que não distribui ela mesma bolos e sopas? Tratar pobre com comida de pobre só faz aprofundar a sua condição de pobre.

Ao contrário, o que houve foi a suspensão do fornecimento de marmitex para os moradores de rua. Esta em curso, portanto, um projeto de desnaturação da comida. Arroz não será mais arroz; feijão não será mais feijão; bife, nem se fala. Ligar o pobre aos descartes da sociedade que o marginalizou é mante-lo ligado a este estado social sem lhe estender a mão.

Desconheço a política eclesiástica, não compreendo o compromisso da igreja católica com esse projeto de deculturação do pobre, reduzindo-o a um corpo carente de nutrientes. Coisa mais gritante em contraste com tantas políticas de inclusão que ela já advogou. Bastaria só uma pergunta: estariam os membros da igreja (especialmente os que fizeram votos de pobreza) dispostos a se alimentar dessa ração?

Me lembro de um produtor de embutidos na Serra Gaúcha que, para atestar a excelência de seus produtos, repetia um conselho inesquecível do pai: “meu filho, nunca venda nada do que você mesmo não comeria”. Pense nisso, gente boa.