VÍDEO: Homem negro é agredido e preso ilegalmente por PMs de SP

Atualizado em 24 de outubro de 2020 às 23:39

Publicado originalmente na Ponte Jornalismo

Por Jeniffer Mendonça

Montagem do vídeo em que o homem é abordado e imobilizado pelos PMs | Foto: Reprodução

Um homem negro foi derrubado no chão, algemado e detido ilegalmente por policiais militares após questionar a abordagem na noite de sexta-feira (23/10), na Rua Augusta, no centro da capital paulista.

De acordo com o fotógrafo Rogerio de Santis, que estava passando pelo local e filmou a ação, por volta das 23h os policiais — da viatura M-07029, lotados na Força Tática do 7º Batalhão de Polícia Militar Metropolitano — passavam pelos bares para determinar que fossem fechados e “mandando as pessoas da rua circularem”. De acordo com o decreto publicado pelo governo estadual no dia 9 de outubro, nas cidades consideradas “fase verde” em relação à pandemia de Covid-19, como São Paulo, os bares devem interromper seu serviço às 22h e clientes podem permanecer até 23h.

Na ocasião, Rogerio aponta que o homem que aparece no vídeo estava na rua filmando os policiais. “Ele começou a questionar a ordem do policial [de mandar “circular”] e deu uma volta em torno de si mesmo, o policial não gostou e mandou ele encostar [na parede]”, afirma.

Nesse momento, nas imagens, o homem questiona diversas diversas o motivo da abordagem. “Põe a mão na cabeça! Você está desacatando a ordem e de um policial”, diz um dos PMs. O homem pergunta: “Qual a atitude suspeita? Por que eu estou filmando a viatura?”.

Os policiais não respondem qual seria a “atitude suspeita”. A polícia só pode fazer uma busca pessoal, sem ordem da Justiça, quando houver “fundada suspeita” de que a pessoa esteja com uma arma de fogo ou com outro objeto que possa ser prova de crime, conforme o artigo 244 do Código de Processo Penal. Além disso, no começo do mês, a Corte Interamericana de Direitos Humanos decidiu que a Argentina não pode dar enquadro sem motivo, determinação histórica que pode influenciar o Brasil.

Um dos policiais questiona “um volume na cintura” e o homem levanta a camiseta e fala para ser levado para a delegacia. Ele se recusa a ser tocado pelos PMs, que tentam arrastá-lo à força. “Você está me machucando”, grita o homem. Em seguida, três policiais o derrubam no chão e o algemam. Algumas pessoas no local começam a gritar sobre a abordagem e alguns veículos buzinam. “Por que vocês estão fazendo isso? É totalmente desnecessário, é agressão”, fala uma das pessoas.

Um dos policiais aborda Rogério, que filmava a ação, e diz que o celular seria apreendido e que seria levado como testemunha. “Eu disse que não iria e, quando me apresentei como imprensa, eles anotaram meu RG na prancheta e me liberaram”, conta.

Depois, o homem é colocado no porta-malas da viatura. No vídeo, os policiais afirmam que estariam levando a vítima pela prática de “desacato”. Segundo Rogério, os policiais disseram que encontraram uma faca com ele. “Um policial disse que o cara ameaçou esfaquear eles, mas não justifica, fizeram uma abordagem truculenta”, afirma. Questionado pelo fotógrafo, o policial disse que o homem seria levado ao 78º DP (Jardins) por desacato.

‘Abordagem ilegal e arbitrária’

Para o tenente-coronel aposentado da PM e doutor em Psicologia pela USP Adilson Paes de Souza, a abordagem dos policiais foi “ilegal, arbitrária, violando não só a lei, mas as normas de abordagem da polícia”.

Na avaliação dele, não houve cometimento de desacato pelo homem por não ter proferido nenhum tipo de ofensa ou xingamento contra os PMs e que é plausível que os policiais peçam para os bares fecharem por causa da pandemia, mas mandar as pessoas saírem da rua é complicado. “A postura do rapaz ali mostra plena consciência dos seus direitos, questionando o motivo da abordagem e a ação dos policiais é tão ilegal que eles não sabem responder qual é essa fundada suspeita”, aponta. “Os policiais até poderiam alegar um crime de desobediência, mas a desobediência só há quando há descumprimento de uma ordem legal e ali o rapaz só estava questionando a abordagem”, prossegue.

O advogado criminalista Flavio Campos concorda. “O crime de desacato se configura quando o agente público é ofendido, humilhado, é desprezado de maneira inequívoca no exercício da profissão”, explica. “Para ter se configurado, a pessoa deveria ter dito algum palavrão, de alguma forma maltratado o agente”, continua.

De acordo com ele, pela corporação ter um treinamento pautado pela hierarquia, “os policiais ficaram com o ego ferido, a sociedade não é movida por hierarquia, mas é assim que eles enxergam”.

Além disso, Adilson destaca que a alegação de “volume na cintura” dita por um dos policiais não é suficiente para a fundada suspeita. “Se for assim, ninguém mais anda na rua, porque volume na calça pode ser uma carteira, um celular”, aponta.

Adilson também destaca que registrar abordagens não é crime. “Além disso, os policiais ali ameaçam quem está filmando de levar o celular apreendido sendo que não é ilegal filmar ação de agente público”, critica.

Sobre a alegação de ter sido encontrada uma faca com o rapaz, o tenente-coronel pondera que “abre a possibilidade, mas isso tem que ser apurado, de que os próprios policiais podem ter colocado essa faca para justificar toda uma abordagem ilegal”. Adilson, que investigou em suas teses de mestrado e doutorado os motivos que levam policiais a matarem, explica que “na literatura científica sobre violência policial, o encontro de objetos ilegais com a vítima da ação policial e que não estariam com essas vítimas antes é comum, por isso tem que lançar essa dúvida sobre essa apreensão”.

Por outro lado, Adilson enfatiza que os policiais em questão aparecem sem máscaras no vídeo, podendo ser tanto vetores de transmissão como contagiados pelo vírus da Covid-19.

Já o tenente-coronel da reserva da PM e ex-secretário nacional de Segurança Pública José Vicente da Silva Filho concorda sobre a ilegalidade de ameaçar apreender celular da pessoa que está filmando a ação, mas afirma não haver abuso da força na abordagem dos policiais. Segundo ele, o policial pode “ter se sentido desacatado pelas palavras, pela resistência”, mas que isso tem que ser apurado na delegacia.

“Nesse caso específico, a gente vê que a pessoa estava resistindo e não deixava os policiais revistarem, o que é uma operação até comum e os policiais podem fazer isso quando há fundada suspeita”, explica. “Sem essa revista, os policiais podem ficar vulneráveis e há possibilidade dele ter alguma arma escondida atrás, escondida na perna, não basta levantar a camisa”, prossegue.

Para José Vicente, há irregularidade quando o homem é colocado no porta-malas da viatura. “O detido é passageiro e ele tem que ser levado com segurança, com cinto de segurança atado. Esse transporte [no porta-malas] só pode ser feito em situação emergencial, quando não há nenhum tipo de veículo que o transporte em situação de segurança”.

O que diz a polícia

Em nota a In Press, assessoria de imprensa terceirizada da Secretaria de Segurança Pública, informou que os policiais abordaram um autônomo de 42 anos “após notarem a presença de um objeto na sua calça” e que ele resistiu à abordagem, “sendo necessário o uso da força para contê-lo”.

De acordo com a pasta, foi encontrada uma faca com o homem, que foi levado ao 78 DP (Jardins), onde foi solicitado “exame de corpo de delito ao autônomo e encaminhou a ocorrência ao 4º DP (Consolação), área dos fatos, para apuração”. Também informou que as imagens enviadas pela reportagem serão analisadas.

Questionada sobre a abordagem dos policiais, a SSP não respondeu.