VÍDEO: Treinamento de Capitã Cloroquina mostra amadorismo do governo

Atualizado em 24 de julho de 2021 às 8:40

PUBLICADO ORIGINALMENTE NO REDE BRASIL ATUAL

Capitã Cloroquina, antes de louvar o remédio, espalhava fake news sobre a Fiocruz. Foto: Reprodução

São Paulo – O “treinamento” de preparação para a CPI da Covid no Senado, em que a secretária de Gestão do Trabalho e Educação do Ministério da Saúde, Mayra Pinheiro, também conhecida como Capitã Cloroquina, confirma ter articulado com os senadores governistas algumas perguntas para que eles fizessem a ela durante o depoimento à comissão, mostra que “a ocupação de cargos dentro do governo (federal) não segue critérios técnicos, mas graus de fidelidade, obediência e amizade. Algo totalmente incompatível com as instituições públicas”.

A crítica é do cientista político e professor da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (Fesp-SP), Paulo Niccolli Ramirez. De acordo com o analista, em entrevista ao Jornal Brasil Atual, em sessão secreta pré-CPI, Mayra “demonstra a falta de trato com a ciência e o método científico”. Ao jornalista Glauco Faria, Ramirez afirma ser “surpreendente que cargos tão importantes sejam ocupados por pessoas tão amadoras”.

O vídeo em questão foi obtido pela comissão do Senado na quebra de sigilo da servidora e divulgado na noite desta quarta-feira (21) pelo site The Intercept Brasil. Nele, Mayra conversa com os epidemiologistas Regis Bruni Andriolo e Hélio Angotti Netto, que é também secretário de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos da Saúde. Aos dois ela pede orientações e informações para usar no depoimento à CPI marcado para o dia 25 de maio.

Não tem evidências

Como a Capitã Cloroquina, os epidemiologistas também são defensores do ineficaz “tratamento precoce”. Durante a pandemia, eles marcaram sua atuação médica recomendando remédios sem comprovação científica. Sabendo que seria questionada sobre o tema, Mayra pergunta se não há uma “bala de prata que eu posso levar estampada para dizer aos senadores: ‘tá aqui a prova estatística que eu tenho até hoje que a hidroxicloroquina, ivermectina funciona”, pede a Capitã Cloroquina.

Na sequência, a própria defensora dos medicamentos sem eficácia confessa que, embora tenha impresso 2.400 páginas de “evidências”, “eu sei que boa parte do eu imprimi, se a gente for analisar, pode ter os mesmos conflitos que o senhor acabou de falar aqui, questões de metodologia inadequada. Então o que eu levo para provar?”, questiona. Apesar da falta de provas que confidenciou, Mayra sempre levou adiante sua defesa desses medicamentos.

A secretária foi também a responsável pelo desenvolvimento da plataforma TrateCov. O aplicativo recomendava a prescrição da hidroxicloroquina e demais medicamentos do “kit covid” em meio à crise sanitária de Manaus. Por conta das polêmicas, a plataforma acabou sendo retirada do ar em 21 de janeiro. A Andriolo, a servidora chega a sugerir que poderia arrumar um cargo para ele no governo federal.

Articulação com governistas

Para Niccolli, a conversa também indica o total “desprezo pela ciência” por parte de Mayra e seus interlocutores. “É realmente triste que esse tipo de indivíduo, pouco estudado, que não sabe sequer ler um gráfico. No vídeo, é assustador como na conversa não se tem uma ideia clara do que é uma prova científica, de como ler um gráfico. Ela tentou empurrar goela abaixo a ideia de que a cloroquina funciona”, relembrou o cientista político.

Na preparação, a Capitã Cloroquina ainda revela que tem “cinco senadores que vão jogar com a gente (na CPI da Covid)”. E pede a Andriolo e Netto que formulem perguntas “que nos ajudem no nosso discurso”. A intenção, explica, é aproveitar o espaço na comissão para “dar a sua verdade”. “Então, que perguntas eu posso dar para esses senadores fazerem a mim? Entendeu? Eles jogam para eu fazer o gol. Eles chutam para eu fazer o gol”, justificou Mayra.

“Capricha e já me dá a resposta, porque os senadores têm que ter essa respostinha. Tem cinco senadores que vão jogar com a gente, preciso dar perguntas para eles interrogarem, cujas respostas sejam oportunidade de eu falar”, completou.

Governo brinca com vidas

Na prática, essa troca de favores do governo Bolsonaro com senadores aliados dentro da própria CPI que o investiga por omissão revela que há “profundas articulações” por trás. Em uma tentativa, segundo Niccoli, “de criar um show midiático, com a intenção de desviar a atenção da população, frente à gravidade que isso representou. Brinca com a vida das pessoas”, denuncia. “O governo, em vez de investir em laboratórios capazes de desenvolver vacinas, comprar máscaras ou elaborar políticas que promovessem o isolamento social, optou pelo pior dos caminhos. Para favorecer políticos e laboratórios, o governo enfiou goela abaixo remédios que não têm eficiência nenhuma”, reforçou.

Desde o ano passado, a Organização Mundial da Saúde (OMS) afirma ter provas de que medicamentos como cloroquina e ivermectina não possuem nenhuma eficácia contra a doença do novo coronavírus. Com o avanço das investigações, apenas na semana passada, o Ministério da Saúde enviou duas notas técnicas à CPI da Covid, confirmando que os medicamentos do “kit covid” não devem ser utilizados no tratamento do vírus. O reconhecimento tardio foi visto por especialistas como uma forma da gestão Bolsonaro afastar mais essa denúncia que pesa contra ele pelo lobby dos remédios sem comprovação.

Ainda assim, o cientista político diz que essa atuação do presidente da República pode sim “caracterizar crime contra a humanidade”. De acordo com Niccolli, o princípio básico de preservação do direito à vida foi violado por Bolsonaro. “E é óbvio que isso pode ser levado aos tribunais internacionais”, conclui.

Confira a entrevista