Publicado no Justificando.
A noite do último dia 25 no estádio municipal Douradão, em Dourados (MS), abrigou uma audiência pública, no mínimo, curiosa. Sobre um palco montado diante de milhares de pais e mães de alunos da rede pública de ensino da região, Sérgio Fernando Harfouche, Procurador de Justiça, bradava em tom de líder religioso inflamado frases de ordem por Deus nas famílias e condenações públicas à discussão de gênero nas escolas. O evento deveria discutir um programa de evasão escolar e obrigou a presença de todos sob pena de multa e acusação de crime. No final o encontro acabou por se tornar uma pregação motivacional e religiosa.
A organização que conseguiu reunir milhares de pessoas coube à Prefeitura Municipal, ao Governo do Estado e ao próprio Ministério Público do Mato Grosso do Sul. Procurada pelo Justificando, a Procuradoria Geral do MPMS negou a participação institucional do órgão na organização ou realização do evento, sendo tudo de exclusiva responsabilidade do Procurador de Justiça Sérgio Harfouche. Entretanto, à redação o próprio Procurador Harfouche confirmou a participação institucional de várias promotorias de justiça na organização e realização da palestra motivacional e religiosa:
“O evento foi um sucesso. Atingiu a expectativa desejada. Os desafios são grandes, mas as Promotorias de Justiça da Infância e Juventude fizeram inúmeras reuniões com todos os segmentos, cumprindo todos os determinantes de lei”.
“O evento foi do Ministério Público, a Promotoria de Infância e Juventude me convidou e eu vim aqui compartilhar aquela nossa experiência em Campo Grande, que trata de responsabilização de pais, alunos e professores”.
De fato, os pais e mães receberam em suas casas a convocação obrigatória feita pela Promotoria de Justiça da Infância e Juventude, sob pena para quem faltasse à reunião de multa de 03 a 20 salários mínimos, além da acusação por crime de abandono intelectual. Essa convocação, segundo o Procurador de Justiça atendia ao artigo 129 e 249 do Estatuto da Criança e do Adolescente, o qual trata dos deveres inerentes ao poder familiar, algo muito contestado por conta de exercer o direito de não ir à palestra não significa descumprir com deveres do Poder Familiar. O próprio Procurador de Justiça afirmou que não “há intenção alguma de aplicar multa nos pais”. A carta, contudo, não continha o aviso de que as coações envolvidas para o comparecimento da reunião não eram, de fato, aplicáveis.
Nas redes sociais, a convocação obrigatória que levou milhares de pais ao estádio – muitos ficaram do lado de fora – teve péssima repercussão nas redes sociais. Um outro Promotor de Justiça ironizou o evento, chamando-a de “palestra coercitiva” em referência às conduções obrigatórias de pessoas que ficaram famosas nos últimos tempos pela Operação Lava Jato.
Mas o choque foi mesmo os vídeos da palestra do Procurador de Justiça. Em um deles, o membro do Ministério Público faz campanha contra à “ideologia de gênero”, termo criado recentemente por entusiastas do “Escola sem Partido”, mas que não tem clareza no seu real significado. A discussão sobre teorias de gênero é algo visa reduzir a série de violência contra a mulher que assola o Brasil, bem como é exigência de leis e tratados internacionais ratificados pelo Brasil.
“Eu ponho filho na escola para fazer ler, escrever, fazer conta e pensar. Não é para discutir a identidade dele não. [aplausos da público, entusiasmado]. Eu estou falando de identidade de gênero é se meter na identidade do filho. Quantos repudiam identidade de gênero na escola, digam ‘Sim’! [esticando as mãos para o alto]” – quando então a multidão inflamada segue o comando e grita “Sim!”, ao que o promotor então determina ao escrivão da ata do encontro: “Põe na ata! Essa assembleia repudia na identidade dos filhos. Isso é problema de pai e mãe, sim ou não?!”. Então, a multidão responde: “Sim!”. Veja o vídeo:
Em outra parte, o Procurador faz claramente um discurso religioso de palanque – “ensina no coração do seu filho que há um Deus soberano sobre todas as coisas”. Veja:
Para Tiago Botelho, professor da Faculdade de Direito e Relações Internacionais da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD): a Audiência Pública convocada pelo Ministério Público Estadual, não permitia a ausência voluntária dos pais, o que violava o próprio espírito de participação social que movem uma audiência dessa natureza.
Botelho explica que a postura do agente público feriu a laicidade do Estado: “Não pode um Procurador de Justiça, por meio de sua convicção religiosa, determinar o que pode e o que não pode um professor fazer em sala de aula. Não se pode, de maneira nenhuma, confundir o papel de um procurador de justiça e o papel de um cidadão que professa uma fé. Naquele espaço existiam pessoas que acreditavam no Deus cristão, mas também tinham as que não acreditavam. Tanto umas quanto as outras merecem respeito, porque a República Federativa do Brasil é laica: protege todas as religiões, mas não professa nenhuma” – afirmou.
O Promotor defendeu as imposições das sanções, bem como o conteúdo de sua fala pela importância que via no seu programa que foi, inclusive, transformado em projeto de lei em Campo Grande, capital do Estado. AoJustificando, Vanessa Pipinis, jornalista e especialista em programas de educação afirma que pelas imagens não é possível saber sobre o programa defendido pelo promotor de justiça, mas que a grande questão é a sua conduta em si que desrespeitou pais e tratou temas de gênero com leviandade.
“A partir dessas poucas imagens, é possível que o programa defendido pelo promotor de justiça seja realmente bom. Há uma série de programas de combate à evasão escolar por todo país que são muito bons, reconhecidos e urgentes. A realidade da escola é complexa que demandam soluções complexas. Mas o que a gente tem que olhar com cuidado é a postura do agente público, o qual convoca os pais e familiares nessa base [de envio de convocação sob pena de multa], gerando insegurança, constrangimento” – afirmou a pesquisadora.
“Uma postura de um agente público que faz uma oração, que fala de questões relativas à espiritualidade, sabendo que os pais dos alunos têm religiões de natureza diferentes e que muitos ali não foram respeitados, gerando ainda mais constrangimento e também tratar de questões de gênero de maneira tão superficial, sem problematizar, sem entender a importância que é falar sobre isso na escola” – completou.
Para encerrar o evento, o Procurador de Justiça afirmou que “nessa noite [última quinta feira], nós declaramos solenemente Jesus Cristo é o Senhor Dourados, que vai governar Dourados como príncipe da paz. Amém”. O próximo evento do Ministério Público no estádio Douradão com o Procurador de Justiça está marcado para próximo dia 09/06.