Por que amamos e odiamos a Virada Cultural

Atualizado em 23 de maio de 2013 às 10:22

A relação de amor e ódio do paulistano com a Virada.

virada
A cantora Jesuton se apresenta no palco 25 de março da Virada Cultural

 

“Viver a cidade que a gente ama. Fazer a cidade que a gente quer.”

Esse é o slogan de Fernando Haddad na prefeitura de São Paulo. O que significa que a gente ama a cidade, mas prefere outra.

O slogan reflete a relação de amor e ódio que os habitantes têm com a cidade. Vamos olhar a Virada Cultural e o novo Plano Diretor Estratégico para ver como a prefeitura está lidando tanto com o amor quanto com o ódio.

A idéia da Virada – a princípio – traduz tudo que mais amamos em São Paulo: o multiculturalismo. Fala sério, onde mais é possível uma multidão ver e ouvir, em algumas horas, um cortejo de congadas, maracatus e afoxés, a melhor banda cover de Frank Zappa do mundo, Gal Costa desafinando leve e perdoavelmente em plena  cracolândia, relembrando o nascimento da Tropicália na cidade? Uma sucessão de rap, hip-hop e funk em cada esquina e um senador da República – Eduardo Matarazzo Suplicy, of course! – usando o microfone do palco para pedir ao ladrão a devolução de sua carteira roubada?

O que a gente odeia nem precisa dizer, mas vamos repetir: o trânsito infernal, o barulho, a violência, os privilégios dos ricos e senadores, a injustiça, a falta de mobilidade e segurança – não só em relação a assaltos, mas até mesmo para atravessar a rua na faixa ou andar de bicicleta na ciclofaixa: o atropelamento brutal do ciclista pobre que perdeu o braço na avenida Paulista a caminho do trabalho dispensa mais comentários.

Enquanto a Virada está prestes a virar lei proposta pelos vereadores tucanos Andrea Matarazzo e Floriano Pesaro – dois entre milhões de oriundi presentes na cidade, incluindo o verdadeiro chefe do partidos deles, José Serra – com apoio do PT e da Comissão de Justiça da Câmara, o Plano Diretor Estratégico está longe de alcançar tamanho consenso, e até mesmo de conciliar a frágil lei do silêncio urbano com a preservação do sono dos atuais e futuros moradores que o plano pretende concentrar no centro da cidade para tentar reaviva-lo. E mais: a violência que o público enfrenta durante a Virada é a mesma com a qual os habitantes do centro da cidade já estão acostumados. Talvez um pouco mais estimulada pela freguesia ocasional, mas nada muito diferente do dia a dia.

Para produzir uma virada na cidade que a gente ama e fazer a cidade que a gente quer, o prefeito Fernando Haddad conta com vários instrumentos. O secretário baiano da cultura paulistana, Juca Ferreira, por exemplo, começou propondo e realizando na Virada deste ano a autonomeada “descriminalização do funk” e o retorno do Racionais MC, banidos da Virada pela administração Kassab sob a acusação de promoverem a violência. A Polícia Militar do governo estadual, no entanto, é a responsável pela segurança do evento e acredita na vinculação direta do funk ao tráfico de drogas. Temos ai um ponto de atrito e uma razão para acreditar que possa ter havido alguma animosidade entre as autoridades responsáveis pela organização e pela segurança do evento. Eu, no entanto, posso apenas afirmar com convicção que a única cena de abuso da autoridade policial que testemunhei partiu da Guarda Civil “Metropolitana” – municipal – e não da PM. Como os partidos que dirigem os governos municipal e estadual possuem orientações distintas e as corporações militares de segurança possuem suas próprias, fica muito difícil uniformizar as polícias.

Para fazer a cidade que a gente quer na cidade que a gente ama, as audiências públicas para a definição do plano diretor estratégico e “participativo” – como reza a propaganda do governo – precisam ser tão populares e lotadas quanto a Virada. E, nesse quesito, a propaganda do governo não está sendo tão eficiente quanto a propaganda da Virada, nem o seu slogan parece ter sido compreendido pelos próprios redatores. A última audiência sobre a reformulação da Operação Urbana Água Branca, por exemplo – que se antecipa ao próprio Plano Diretor sendo subordinada a ele – teve público muito inferior às anteriores realizadas pela administração Kassab e comandadas pelo ex-secretário do Verde e do Meio Ambiente, Eduardo Jorge. Ainda assim o público presente pode expressar claramente sua oposição aos planos da prefeitura de aumentar o caos urbano criando um novo bairro para 60 mil habitantes em área de várzea do Tietê espremida entre o rio e as linhas de trens e metrô, carente de escolas, hospitais, transportes e outros serviços públicos.

É verdade, porém, que a Secretaria de Desenvolvimento Urbano criou uma página no caótico site da Prefeitura – os sites sempre são espelhos – contendo informações atualizadas e até transmissões online das apresentações públicas do plano diretor. A penúltima – sobre mobilidade urbana, com a presença maciça dos ciclistas paulistanos – lotou um auditório de apenas 300 lugares. A última – sobre instrumentos de política urbana – foi marcada pelos conflitos entre o plano diretor e as leis de regulação urbana: como o plano, o silêncio e a lei da Virada, por exemplo. Tudo isso é bom, mas ainda é muito pouco perto do que a cidade precisa. E falta planejamento e organização num debate tão amplo e complicado, envolvendo partes tão frágeis quanto poderosas em lados opostos. Há técnicas, equipamentos e especialistas em organização do planejamento participativo que ficaram tão abandonados quanto o centro da cidade quando a Virada acaba.

Comandada pelo vereador Matarazzo – sobrinho-neto do conde cujo império industrial dominou aquela área – a audiência foi um exemplo perfeito de como os slogans mudam ao sabor do vento e dos interesses sem que a cidade consiga virar com eles. Durante o governo Kassab, Matarazzo foi Subprefeito da Sé, onde inaugurou a Virada que hoje quer transformar em lei. Quanto à operação urbana Água Branca – cujo projeto foi iniciado por Kassab – ele agora se diz contra “do começo ao fim”.

Só para terminar: São Paulo teve 57 prefeitos entre 1900 e 2000. Ou seja, um prefeito a cada 1,7543859649122807017543859649123 anos. Dá pra imaginar quantos slogans já teve?

Suplicy pede carteira que lhe fora roubada durante apresentação da cantora Daniela Mercury
Suplicy pede carteira que lhe fora roubada durante apresentação da cantora Daniela Mercury