Vivi para ver. Por Frei Betto

Atualizado em 16 de setembro de 2025 às 6:44
O ex-presidente Jair Bolsonaro. Foto: Divulgação

Por Frei Betto, no Instituto Humanitas Unisinos 

“Para mim, o tribunal que agora condena os cabeças da intentona golpista de 2023 representa exatamente isto – a recusa em ser neutro diante da barbárie”, escreve Frei Betto, escritor e autor do romance sobre massacre de indígenas na Amazônia, “Tom vermelho do verde” (Rocco), entre outros livros.

Eis o artigo.

Eu tinha 19 anos em junho de 1964. Morava no Rio, em uma “república” de estudantes dirigentes da Ação Católica. Na madrugada de 5 para 6 daquele mês, agentes do serviço secreto da Marinha, o Cenimar, invadiram nosso apartamento armados de metralhadoras. Fomos todos levados para o Arsenal da Marinha. Aos socos e pontapés me torturaram, convencidos de que eu era Betinho, líder da Ação Popular, uma organização de esquerda, e anos depois da Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida.

Entre o cárcere militar e a prisão domiciliar, fiquei retido um mês. Não houve processo ou reparação. Nem sequer o direito a um advogado. Dei-me conta do que é uma ditadura.

Cinco anos depois fui novamente preso em Porto Alegre por favorecer a fuga do Brasil de perseguidos pelo regime militar. Trazido para São Paulo, presenciei torturas, perdi companheiros e companheiras assassinados por militares e policiais civis. Ao longo de quatro anos, transitei entre oito cárceres diferentes. Fiquei dois anos entre presos políticos e mais dois na condição de preso comum com narcotraficantes, assaltantes de bancos, assassinos contumazes, estelionatários e estupradores.

Ao completar quatro anos de cárcere, o STF reduziu minha pena para dois anos… Manteve, porém, a cassação de meus direitos políticos por 10 anos. Nenhum de meus torturadores, juízes ou carcereiros jamais respondeu à Justiça pelos crimes e abusos praticados.

Foram todos beneficiados pela aberração da “anistia recíproca” decretada pelo general Figueiredo.

Tudo que vivi e sofri sob a ditadura está contido em meus livros “Cartas da Prisão” (Companhia das Letras); “Batismo de Sangue” e “Diário de Fernando” (ambos da Rocco).

Agora, sinto certo alívio ao ver Bolsonaro e seus cúmplices de organização criminosa condenados pelo STF por atentarem contra o Estado Democrático de Direito. Alívio, não por vingança, e sim por reparação simbólica que restitui à vida um sentido. Ver o direito prevalecer sobre a barbárie pode ser, para quem já peregrinou longos anos, a confirmação de que o mundo não é inteiramente injusto.

Jair Bolsonaro durante seu julgamento. Foto: Divulgação

Esperar é um exercício de resistência. Carreguei a dor em silêncio e envelheci sem jamais perder a esperança de, um dia, ver militares golpistas punidos pela Justiça. Suporto a cada dia o vazio deixado pela perda de tantos companheiros e companheiras, como frei Tito, meu confrade na Ordem Dominicana; Heleny Guariba, colega de teatro e cárcere; Jeová de Assis Gomes, Carlos Eduardo Pires Fleury, Aderbal Coqueiro e tantos outros(as) a mim irmanados na prisão e na resistência à ditadura.

O escritor grego Ésquilo afirma, em “Agamêmnon”, que “A dor é a mestra mais verdadeira”. A mim, a dor não apenas ensinou; moldou décadas de sobrevivência, sustentadas pela esperança de que um dia arautos da ditadura responderiam por seus atos.

O tempo muitas vezes é cruel. Paradoxalmente, amadurece os frutos da Justiça. Miguel de Cervantes escreveu em “Dom Quixote”: “A verdade pode andar sufocada, mas jamais morre”. Assim, mesmo encoberta por manobras jurídicas, recursos e adiamentos, permanece viva e aguarda a hora de se impor.

Disse Sêneca, filósofo romano: “A justiça não consiste em ser neutra entre o certo e o errado, mas em encontrar o certo e sustentá-lo contra o errado”. Para mim, o tribunal que agora condena os cabeças da intentona golpista de 2023 representa exatamente isto – a recusa em ser neutro diante da barbárie.

Não há sentença capaz de devolver vidas perdidas em 21 anos de democracia sonegada, mas há decisões que devolvem dignidade a quem ficou. Hannah Arendt, ao refletir sobre o mal e a responsabilidade, lembrava que “a justiça deve estar sempre presente, ainda que o mundo acabe”. Sinto-me, agora, amparado pelo peso ético de uma instituição democrática, o STF, que cumpriu seu dever.

Meu estado de tranquilidade não nasce da alegria, mas da paz. Viktor Frankl, sobrevivente dos campos de concentração, escreveu em seu “Em busca de sentido”: “A felicidade deve brotar como efeito colateral da dedicação pessoal a uma causa maior”.

Punir Bolsonaro e sua organização criminosa significa preservar a memória de tantos que fomos e somos vítimas de 21 anos de ditadura. Ao ver a Justiça reconhecer oficialmente os culpados de agressão à democracia, percebo que o exemplo de resistência de Marighella, Lamarca e tantos que lutaram contra o arbítrio, não foi apagado pelo esquecimento. A sentença eterniza suas ausências como presenças.

Um idoso como eu, ao ver golpistas punidos, resgato a confiança – ainda que tardia – no poder humano de distinguir o justo do injusto, o bem do mal. O que sinto não é euforia, mas reconciliação com a vida e a democracia.