“Você não tem um banho quente, mas tem sua liberdade”: a linda carta de Cavani para ele mesmo aos 9 anos

Atualizado em 6 de julho de 2018 às 10:57
Cavani. Foto: Wikimedia Commons

Postado originalmente 1º de julho. Republicamos hoje com o jogo do Uruguai contra a França.

Edinson Cavani, atacante do Uruguai, tirou Portugal da Copa com dois gols. Ele escreveu uma carta para ele mesmo aos 9 anos com o intuito de contar como é sua vida aos 31.

Foi publicada no The Players’ Tribune.

“Não há PlayStation. Não há TV grande. Você não tem nem chuveiro quente. Não há aquecimento também. No inverno, seu sistema de aquecimento é feito por quatro cobertores”, escreve Cavani.

Abaixo, numa tradução na raça:

“Caro Edinson de 9 anos,

Eu escrevo isso para o garoto que no bairro todo mundo chama de ‘Pelado’.

Quando você era bebê, não tinha muito cabelo. Cresceu pouco a pouco. Uma merda! Não havia que você pudesse fazer a respeito. Então, graças à criatividade de sua família, você sempre foi o ‘Pelado’.

Bem, fico feliz em dizer que nos próximos 20 anos o futebol vai mudar sua vida de muitas maneiras. Algumas muito boas, outras nem tanto. O futebol vai ajudar você a se livrar daquele apelido. Existe um cara chamado Gabriel Batistuta. Você ainda não sabe, porque o único programa que você tem a paciência de assistir na TV é Tom & Jerry. Seu irmão mais velho, Nando, será o primeiro a ser inspirado por Batistuta. Ele vai começar a se recusar a ir ao cabeleireiro. E usar o condicionador da sua mãe. E pouco a pouco, ele começará a se parecer com o magnífico Batigol. Quando ele está correndo em um campo de futebol, com seu cabelo comprido puxado para trás e segurado por um elástico, será a coisa mais cool que você já viu.

Chegará a hora em que você dirá à sua mãe: “Sem mais cortes de cabelo”.

Você vive a sua vida lá fora, com uma bola nos pés. Do jeito sul-americano. Você não sabe fazer diferente. E também, o que há para fazer dentro? Nada divertido, nada interessante. Não há PlayStation. Não há TV grande. Você não tem nem chuveiro quente. Não há aquecimento também. No inverno, seu sistema de aquecimento é feito por quatro cobertores. Quando você precisa tomar um banho, você tem uma garrafa térmica com água que você aquece na cozinha com querosene. É muito importante entender como combinar água fria e quente. De pé na banheira, você aprende a ser um alquimista.

E, no entanto, isso será um luxo para você. Ou você não se lembra da sua primeira casa? Aquela que não tinha banheiro. Aquela casa onde toda vez que você tinha que se aliviar, você não tinha escolha senão sair e ir para a pequena cabana!

Você pode me deixar te contar um segredo? Quando me lembro dessa imagem agora, não me sinto mal. Por alguma razão, isso me enche de energia. Isso me dá coragem. É uma linda lembrança.

Não se preocupe com o que você tem na casa. Você tem que continuar vivendo sua vida ao sol, Pelado.

Além disso, qual é a razão para ter cartazes de futebol presos na parede? A cada dois ou três anos, quando você muda de emprego ou sua família não pode pagar o aluguel, você tem que se mudar para outro lugar. Mas você sabe o que é melhor? Que em cada casa nova, não importa onde esteja localizada, você sempre tem um pequeno campo do lado de fora. E também há uma bola. Não há locatário no mundo que possa tirar isso de você.

O que mais importa em sua vida neste momento, se bem me lembro, é o Gol do Sorvete.

O Gol do Sorvete é algo mágico. Eu preciso falar com alguém do PSG sobre o Gol do Sorvete. É genial. É pura motivação. A ideia era para os organizadores do campeonato juvenil de Salto. Como você motiva um bando de guris de 6 anos?

Colocando a regra de que o garoto que faz o último gol do jogo toma um sorvete.

O resultado poderia ser 8-1, mas isso não importa. É uma corrida contra o tempo. Marque o último gol do jogo. E a sensação ao ouvir o técnico que tocou o apito para marcar o final, quando você fez o Gol do Sorvete… incrível! Uma imensa alegria. Será chocolate? Você vai pegar um desses do Mickey Mouse? Seja o que for, ao longo desse dia, você é o rei.

Claro que você não é um garoto da capital, Pelado. Os meninos de Montevidéu vivem em um mundo diferente. Um mundo que você nem conhece. Um mundo de chuteiras Adidas, viagens de carro e grama verde. Em Salto, tudo é diferente. Por alguma razão, todo mundo quer jogar descalço. Algumas crianças começam os jogos com chuteiras, mas depois, no intervalo, todas as chuteiras estão empilhadas de um lado e todo mundo corre descalço. Se eu fechar meus olhos agora, ainda posso sentir a lama nas solas dos meus pés. Ainda sinto meu coração batendo, correndo atrás da bola, sonhando com sorvete.

Você carregará esses sentimentos com você por toda a sua vida, porque você é sul-americano. Você é do Uruguai. Você é de Salto. Você vive o futebol de uma maneira diferente.

A bênção e a maldição para os uruguaios é que nunca podemos relaxar. É a história do nosso futebol, é a história do nosso país. Quando colocamos o azul, sentimos o orgulho da nossa história. Temos de seguir adiante. E você vai.

Quais são seus sonhos, Pelado? Eu nem me lembro deles exatamente. O tempo os transformou em memórias difusas.

O seu sonho é jogar em Montevidéu, como Nando? Você vai conseguir, e quando fizer isso, vai sentir que está jogando na Liga dos Campeões.

O seu sonho é jogar na Europa? Você vai fazer isso e ganhará dinheiro suficiente para mudar a vida de sua família.

O seu sonho é jogar pelo Uruguai? Você fará isso e terá experiências que o farão chorar de alegria e também de tristeza.

O seu sonho é jogar uma Copa do Mundo? (Eu não vou estragar a surpresa, vou dizer que 2010 será El Loco).

Seu sonho é ter muito dinheiro, dirigir bons carros e dormir em hotéis elegantes? Bem, Pelado, você terá todas essas coisas. Mas eu tenho que te dizer uma coisa. Elas não necessariamente farão você feliz.

O que você tem agora, com 9 anos de idade, é algo de que eu sinto muita falta agora. Você não tem um banho quente. Você não tem um dólar no seu bolso. Você nem tem um bom cabelo. Mas você tem outra coisa. Algo que não tem preço. Você tem sua liberdade.

Quando criança, você vive sua vida com uma intensidade e uma paixão que são impossíveis quando adulto. Tentamos nos apegar a esse sentimento quando crescemos, mas ele começa a desaparecer. Ele escorrega pelas nossas mãos. Existem muitas responsabilidades. Muita pressão. Muita vida a ser vivida interiormente.

Você sabe como é a vida agora, aos 31 anos de idade?

Você vai de um hotel para um ônibus e de lá para um campo de treinamento. Depois do campo de treinamento para um ônibus e um avião. Do avião você vai para outro ônibus. Do ônibus você vai para um estádio.

Em muitos aspectos, você está vivendo um sonho. Mas em muitos outros, você também é prisioneiro desse sonho. Você não pode sair e sentir o sol. Você não pode tirar as chuteiras e jogar descalço. As coisas vão acontecer de modo a tornar sua vida muito complicada. É inevitável.

Quando você é criança, você tem a sensação de que a pessoa mais bem-sucedida é aquela que tem mais coisas. Quando você cresce, percebe que a pessoa mais bem-sucedida é aquela que tem a sabedoria de viver a vida.

Quando você conseguir isso no futebol profissional, você terá tudo com que pode sonhar. E para isso você terá que ser extremamente grato. Mas tenho que ser honesto com você, Pelado. Existe apenas um lugar onde você pode ter essa liberdade total. E dura 90 minutos, se você tiver sorte.

Quando você coloca suas chuteiras, não importa se você está jogando na terra em Salto, na grama verde de Nápoles ou na frente de milhões de pessoas em uma Copa do Mundo…Eu quero lembrá-lo das palavras do seu pai.

O que ele sempre te diz, toda vez que você vai jogar?

Eu sei que você sabe disso.

Ele diz: “No momento em que você cruza a linha de cal e entra no campo, é apenas futebol. Nada que acontece fora dessa linha irá ajudá-lo com o que se passa dentro de você. Nada mais existe”.

Se você ouvir essas palavras e realmente acreditar no espírito delas, então, mesmo que a pressão seja imensa, mesmo que você esteja jogando em frente de milhões de pessoas… você sairá do campo e sentirá que está jogando descalço.

Você vai sentir a lama presa nas solas dos seus pés.

Você sentirá seu coração batendo e correrá procurando a bola, como se fosse o maior troféu do mundo. Como se estivesse jogando por sorvete.

Sinceramente,

Edi”