Você pode não gostar do réu, do advogado, do ministro. Só não pode desgostar do Direito

Atualizado em 5 de maio de 2021 às 11:14
Sérgio Moro. Foto: AFP

Por Lenio Luiz Streck, Marco Aurélio de Carvalho e Fabiano Silva dos Santos no Globo:

Jeremy Waldron conta a história do Sr. Buckley, que atuava como juiz leigo. O comportamento do Sr. Buckley era famoso na cidade: xingava todo mundo e mandava todo mundo para a “jaula”.

Entrevistado, “seu” Buckley disse: “Eu sigo meu próprio bom senso, e pros diabos com o Direito”. A história está no “New York Times”, em artigo que alerta para os riscos do autoritarismo.

Pois, no Brasil, a julgar pelas críticas de professores de Direito, advogados e jornalistas ao julgamento do Supremo Tribunal Federal no caso da suspeição e incompetência do ex-juiz Moro, tudo indica que “seu” Buckley fez escola. Dependendo do réu, “pros diabos o Direito”. Está certo que “seu” Buckley era juiz leigo. Mas seu exemplo calhou para a discussão a respeito do valor da lei e do problema do “cada um tem seu bom senso”. Bom para quem?

Nossa pergunta: qual é a serventia da Constituição e das garantias processuais? O óbvio: proteger qualquer cidadão contra o arbítrio.

No Direito, juiz parcial e/ou incompetente é como um vírus. Contamina a tudo e a todos. Essa espécie de “coronajuris” só se combate com “vacinajuris”, que é a Constituição. Que é para todos. Que é remédio contra o desprezo pessoal de pessoas que não gostam de determinados réus.

Estranhamos que pessoas esclarecidas digam que garantias processuais nada valem. Qualquer grande jornal ou empresário alega, em seu favor, em qualquer processo, garantias processuais, como imparcialidade, juízo natural, prescrição.

Veja-se que, no caso de decisões do STF sobre economia — por exemplo, reforma trabalhista —, “questões processuais” são muito bem recebidas por grandes empresas, inclusive de comunicação.

O que se torna bizarro no “caso Moro” é que as leis e a Constituição só valem se forem interpretadas de acordo com o que querem os contrários à declaração de suspeição do ex-juiz. Para estes, o juiz pode atirar a flecha e depois pintar o alvo. Pode, também, grampear advogados, coordenar a atividade do Ministério Público e condenar sem provas. Desde que, claro, o réu seja Lula.

Vamos tentar explicar melhor o valor da lei e do Direito. Em 1801, nos EUA, o presidente Adams nomeou 67 juízes. Estava em fim de mandato. Assumiu Jefferson, de outro partido, e disse que não daria posse. Marbury, um dos juízes, entrou, junto à Suprema Corte, com ação-piloto para garantir o direito líquido e certo. O que fez a Corte? Não havia óbice a que Marbury tomasse posse. Uma questão processual foi o centro do debate. Uma filigrana, diria Dallagnol. Só que essa “pequena questão processual” era nada menos do que a determinação dos limites do Poder Legislativo. A lei que dispôs que a Suprema Corte poderia decidir esse tipo de causa era inconstitucional. Pronto. Graças a essa “questão processual sem importância” (como diriam um famoso jornalista e um famoso jurista), o mundo conheceu o controle difuso de constitucionalidade. E hoje qualquer estudante de Direito recita o caso “Marbury v. Madison”. Bonito, não?

Médicos receitam antibióticos. Se um médico faz passeata contra o uso indicado de remédios, o que seus colegas dirão? Se um filósofo diz que filosofia é bobagem e que Platão e Aristóteles foram falastrões, o que dirão os filósofos? Se um jornalista diz que não existem fatos e que só existem as interpretações que ele faz dos fatos, o que se diria dele?

Nessa linha, o que dizer de juristas que falam mal da Constituição e criticam duramente o STF por ter decidido usando garantias processuais, que seriam, para os críticos, questiúnculas?

Ora, você pode não gostar do réu, do advogado, do ministro. É claro que pode. Estamos ainda numa democracia. Só não pode desgostar do Direito. Porque aí já não estaremos mais numa democracia.

Ainda assim está difícil de entender? Bem, somos todos pacientes, como já se disse por aí. Um dia, quem sabe, o debate público levará o Direito a sério. Do contrário, chamemos o juiz Buckley. E mandemos a lei para o inferno.