Nunca antes na história dos transplantes foi tão fácil trocar um rim, a medula óssea, coração, pulmão, fígado, pâncreas e córneas do que no Brasil do SUS. Mais transplantes do que aqui só nos Estados Unidos, isto porque eles têm mais gente e mais hospitais.
Do governo Dilma para cá, os procedimentos são pagos pelo mamute da medicina nacional a preços que deixam os médicos quase na porta dos hospitais, esperando alguém dar o último suspiro pra pegar o que sobra de um cadáver, não importa se rico ou pobre.
Dezenas de hospitais Brasil afora abriram centros de transplantes. Blumenau, além de cerveja, virou um centro de excelência hospitalar.
SC é o estado com o maior número de doadores. Então, lógico, virou uma indústria que cresce acima da taxa nacional. Os inscritos na fila do SUS versão Oktoberfest trocam as peças mais rápido do que em qualquer canto do país.
Do Natal para cá, no pequeno Hospital de Caridade de Floripa, 12 rins novinhos saíram das geladeiras.
Alguém dirá “ah, não é bem assim“ – neste caso, será um profissional da saúde querendo mostrar serviço ou um leigo desinformado que nunca deu bola pro assunto.
Esta última categoria só se preocupa com o tema quando já não consegue respirar direito ao subir uma escada (coração, pulmão), ou quando não pode mais beber um refri (rins), ou quando está tateando nos corredores (córneas).
Pro cidadão comum, o bicho chega pegando.
Pra mim, foi no início de 2002. Meu filho de 24 anos caiu da moto e deixou 30 por cento dos miolos espalhados nos paralelepípedos da estrada da Lagoa da Conceição, em Floripa. Era um domingo de abril, mais ou menos 3 da madrugada.
Motoqueiro sem documentos e aparência saudável, o pessoal do Hospital Celso Ramos o deixou agonizando no corredor, certo de que era um candidato à morte cerebral, só de olhar o tamanho do buraco na cabeça.
Ainda vivo, aparentava preencher o primeiro critério para ser doador, a MC.
Leigos, entendam! Não precisa morrer a morte morrida, aquela do último suspiro.
Na MC o paciente fica pendurado num respirador, vira um vegetal e, em 30 dias, só mãe e pai ainda visitam o infeliz. Aí mandam desligar as máquinas e entregam os pontos.
É logo naquelas primeiras horas depois de entubado pelos bombeiros e jogado num corredor do SUS que alguém chegará para você com um ar constrangido, voz firme e pedido delicado: “Que pena, tão jovem”.
Parece alguém da família, aí cai a ficha: “O senhor estaria considerando uma doação de órgãos, caso o pior aconteça”?
Já? Apenas 12 horas depois do acidente? Não perguntei, mas avaliei a situação.
Me dei conta de que o pobre funcionário de branco tinha a árdua tarefa de “coleta”, como chamam esta parte da operação toda, coordenada pelo Ministério da Saúde.
O coletador precisa ser ágil, obter a assinatura dos parentes para doação dando tempo pras equipes médicas sacarem o que for possível. Um coração estraga em 4 horas, fígado em 6, rim em 48 – cada órgão tem seu tempo.
Por isso, quando o coletador pega tua assinatura, vapt, vupt, some. Se não pega, fica por perto, como um urubu de branco, esperando pelo melhor…
Quando sai a doação, não é para qualquer equipe. O Ministério da Saúde garante que seja uma que não esteja envolvida em transplantes – o legislador médico bolou assim pra que o pessoal dos transplantes não torça pela morte do paciente.
É proibidíssimo – parece que em outros países, onde era possível, acabava havendo congestionamento de médicos nos corredores dos hospitais, tipo “me dá este defunto que eu vi primeiro”.
As estatísticas brasileiras indicam que pouca gente deixa expresso em documento o ato de doar o próprio corpo.
Se todos deixassem, as geladeiras das morgues teriam estoques para transplantar todos os pacientes de todas as doenças – e teriam que descartar muitas peças, sobrariam só os filés.
Filés ? É assim que os médicos descrevem, por ex, um rim de um jovem saudável de 24 anos. Nem queira saber o que dizem de um órgão de um fumante que teve um AVC aos 74…torcem o nariz!
Hoje no SUS o paciente tem direito a saber se está levando um filé ou um pulmão de segunda, preteado por cigarro.
Os médicos devem informar antes de fazer a operação: não sei se é verdade, mas dizem que Bolsonaro quer acabar com esta notificação compulsória…
Na China, faz uns 20 anos, eu soube de um comércio de rins na faixa de 70 mil dólares (rins são os mais comuns, coração por óbvio ninguém vende)
Na Índia e na Indonésia, mais barato – mas aí vem a vantagem da internet, hoje o mercado está inflacionado nestes países.
A América Latina já teve seus dias.
Quando meus rins começaram a falhar (durante o governo Temer…), meu irmão me prometeu que compraria um rim no exterior se eu precisasse, numa operação mafiosa: eu teria que viajar para a Turquia e esperar num hospital…nem pensar.
Enfim, meus rins falharam. Entrei em hemodiálise e fui para lista de transplantes da Santa Casa de Porto Alegre, com promessa de esperar apenas um ano.

Descobri que cada hospital vende sua “excelência”, me chamaram seis vezes e nenhuma delas o rim servia para mim, lá se vão dois anos.
Aí surgiram as ofertas de doadores vivos. Minha mãe, que os tem excelentes, ofereceu um deles – imaginem, tirar de uma senhora de então 90 anos. Seria matar a velhinha.
Segunda opção, meu primogênito me ofereceu, mas descobrimos que ele tinha o sangue da mãe, incompatível com o meu. Meu quarto filho, jornalista em Brasília, tinha sangue compatível e queria fazer todos os exames complementares…recém-casado, com seu primeiro bebê.
Que pai tiraria o rim de um filho assim?
Sobrou o rim do filho que perdeu o cérebro. Precisaria de autorização judicial porque ele nunca mais recuperou a consciência depois daquele acidente de moto.
Sobreviveu, mas ficou fora da casinha. Fiquei com vergonha de ir à Justiça para uma causa destas.
De vez em quando se vê na TV dramas familiares de irmãs, irmãos, amigos, desconhecidos que doam..mas isto está fora das estatísticas. É tão raro que dá no Fantástico.
E, sabe-se agora, familiar tão próximo como um filho, por exemplo, pode estar até em segundo para um desconhecido que tenha uma certa compatibilidade sanguínea..
Aí vem o debate de compra e venda de órgãos no mercado nacional, coisa que nossos legisladores proibiram. A discussão não pode demorar mais que 10 minutos. Compra quem tem dinheiro, vende quem não tem.
Logo, se o dinheiro falar mais alto, clinicas particulares substituirão o SUS. Hoje um transplante de coração + pulmão tá 68 mil no SUS. Com plano de saúde vai custar metade, mas o dobro para quem não tiver plano.
Já vejo o SUS terceirizando transplante de pâncreas e medula óssea, coisas que precisam de um bambambam pra fazer.
Neste cenário Bozo, também já vejo algum estagiário com bisturi numa mão e um smartfone na outra, cavoucando tuas entranhas pra tentar trocar teu coração – chance zero de acertar.
Vou ficar na fila do SUS esperando meu rim enquanto der.