Exclusivo: Temer acelera projeto de hidrovia na Amazônia de R$ 500 milhões e leva terror a população ribeirinha no PA

Atualizado em 25 de setembro de 2017 às 16:18
O Pedral do Lourenção, no Rio Tocantins: no meio do caminho do governo

POR EDUARDO REINA E PAULO ROBERTO FERREIRA 

Fotos: Paulo Roberto Ferreira

No meio do caminho tem uma pedra. Uma não, uma cadeia de pedras, espalhada em 43 quilômetros no leito do rio Tocantins, dentro do município de Itupiranga, no sudeste do Pará, na Amazônia brasileira. A mais famosa das rochas é conhecida como Pedral do Lourenção, lugar perigoso para a navegação, sobretudo entre setembro e dezembro.

A meta do governo federal é remover esse obstáculo à navegação a fim de viabilizar a hidrovia Araguaia-Tocantins durante o ano todo, numa obra que vai custar meio bilhão de reais. Isso facilita o escoamento de minérios, soja e pecuária. Mas ninguém procurou saber a opinião das comunidades que vivem em torno do Pedral, que está desesperada com possíveis consequências negativas em seu cotidiano com obra gigantesca.

É assim que funciona a lógica do capital em relação a Amazônia: o grande almoxarifado precisa abastecer o mundo e a população tradicional é apenas um detalhe secundário.

Há poucas semanas a revogação de proteção ambiental em área entre o Pará e o Amapá, a chamada Renca (Reserva Mineral de Cobre e seus Associados), criou um escândalo internacional para o governo Temer, que pretende facilitar a mineração por parte da iniciativa privada no local. A reserva mineral é do tamanho da Dinamarca.

A Justiça mandou anular o decreto assinado por Temer que acabava com a proteção da reserva e liberava o ingresso da iniciativa privada na exploração local. Mas o impasse continua. Já o caso do Pedral do Lourenção é um escândalo secreto. Milhares de pessoas serão impactadas negativamente e nem se fala nesse problema.

Os moradores de Itupiranga não gostam da expressão “Pedral do Lourenço”. Eles reagem com indignação. Dizem que é invenção de empresários e técnicos. O nome correto é Pedra do Lourenção, pois segundo a lenda, foi no redemoinho formado em torno da rocha mais alta (e mais visível na época da cheia) que naufragou a embarcação de um morador, conhecido por Lourenção. Os moradores com mais de 80 anos repetem essa história que ouviram de seus avós. O certo é que o nome do personagem é sempre pronunciado no aumentativo.

A formação rochosa fica mais exposta no período da estiagem, o que dificulta ainda mais a navegação no trecho do Tocantins que vai da ilha do Bogéa até a vila de Santa Terezinha do Tauri. Quanto mais seco o rio, maior a beleza do lugar, que encanta os olhos dos visitantes. A maioria dos moradores vive da pesca, mas acompanha o movimento de balsas que removem cascalho no fundo do rio para garimpar diamante e ouro.

Diamante e madeira

Até o início dos anos 60 a atividade garimpeira foi muito forte no município. Uma empresa de mineração, comandada por um norte-americano, explorou, durante muito tempo, a extração de diamantes. Getúlio Souza, 77 anos, ingressou na Caeté Mirim em 1958, como piloto de barco, e acompanhou a intensa atividade na área, que chegou a contar com mais de 2,4 mil homens, balsas, equipamentos de mergulho e uma pista de aviação. Pelo que foi registrado na antiga Coletoria de Renda de Marabá, “eles arrancaram 75 mil quilates, que é equivalente a 15 quilos de diamante”.

Ameaçado

Através do Decreto 47.116, de 17 de outubro de 1959, assinado pelo presidente da República, Juscelino Kubitschek, foi concedida autorização de pesquisa de ouro e diamante no leito do rio Tocantins, no Distrito de Itupiranga, que ainda pertencia ao município de Marabá. As áreas envolviam as localidades de Igarapé das Pacas e Canal do Jaú, onde os homens mergulhavam com escafandro para garimpar as pedras preciosas. 

Atualmente existem duas balsas atuando na área, com autorização do DNPM (Departamento Nacional de Produção Mineral), para pesquisa de amostras. José Manuel Carreteiro obteve a licença com prazo até 2018. A outra autorização está em nome de Fabrício Ayres Estorari.

Durante nossa passagem pela região do Pedral do Lourenção encontramos muito rejeito da extração de pedras preciosas atirado nas praias e as balsas ancoradas às proximidades da vila de Santa Terezinha do Tauri. Quando as águas começam a subir os garimpeiros vão embora e só voltam no período de estiagem.

Depois do ciclo da mineração, Itupiranga viveu o período da madeira. O município chegou a contar mais de dez serrarias, que ajudaram a destruir quase toda a floresta primária, incluindo a castanheira, que também foi uma grande riqueza da região. O escoamento da safra de castanha-do-pará, que descia desde São João do Araguaia, Marabá e Itupiranga, com destino a Belém, enfrentava grande dificuldade de circulação no trecho das pedras de Itupiranga.

Com a construção da barragem de Tucuruí, entre 1976 e 1984, o volume de água foi reduzido, bem como as espécies de peixes. Essa é a opinião das lideranças da vila de Santa Terezinha do Tauri, que entrou na lista das localidades que deveriam ficar submersas após a formação do lago da hidrelétrica. José Pereira Lopes, o Zé Nicolau, 55 anos, presidente da Associação dos Moradores da Vila de Santa Terezinha do Tauri, conta que o primeiro impacto que afetou a vida dos ribeirinhos foi a remoção da população para a sede do município, num espaço urbano, distante da margem do rio que passa na frente da cidade.

A Eletronorte não cumpriu com a maioria dos itens acordados, como o fornecimento de cesta de alimentos, construção de um hospital e um campo de futebol. E como a vila não foi alagada, os nativos do Tauri foram voltando aos poucos e se desfazendo das casas na cidade. Como eram posseiros, novos personagens entraram em cena. Ao longo das últimas décadas, as áreas foram sendo ocupadas por fazendeiros que conseguiram títulos de propriedade e substituíram as antigas lavouras agrícolas por pasto para alimentar o gado.

Dinamite ou produto químico?

Hoje a população da vila vive quase que exclusivamente da pesca artesanal. E quando se anunciou um novo empreendimento, o derrocamento das pedras, a notícia inquietou mais uma vez os moradores. Emocionado, Zé Nicolau não tem respostas, mas um conjunto de dúvidas: “A gente não sabe como vai ficar. Ninguém sabe o impacto, vamos ficar olhando as barcaças passarem? Não sabemos o que vai servir para os moradores. É uma coisa espantosa”. Ele acredita também que o volume de embarcações dentro do canal produzirá um grande abalo ao ambiente onde vivem os peixes.

Getúlio “Diamante”

Na vila Belém, município de Nova Ipixuna (que foi emancipado de Itupiranga), a preocupação é a mesma. Os pescadores, que estão sem receber o seguro-defeso, estão intranquilos com as versões a respeito da forma como as pedras serão retiradas do leito do rio Tocantins. “Uns dizem que vai ser com o uso de dinamite, outros garantem que vão usar um produto químico que vai desfazer as pedras”, relata um comerciante, que pediu para o seu nome não ser citado na reportagem.

Geraldo Damasceno, 57 anos, pescador, entrou na conversa e manifestou sua preocupação: “se um negócio desses é capaz de dissolver uma pedra, imagina o estrago que vai provocar na água. Será que os peixes vão sobreviver?” Por enquanto tudo é boato. Mas, qualquer que seja a mexida nas pedras, certamente a ação humana sobre a natureza deve provocar algum tipo de impacto social e ambiental. O tamanho do abalo é que preocupa os moradores.

De concreto mesmo os habitantes das margens da região da Pedra do Lourenção acompanham apenas a instalação de torres e réguas de monitoramento da temperatura e do nível das águas. O equipamento, instalado em 15 pontos, a 100 metros da beira do rio, usa uma placa solar e um sensor.

Mas a empresa DTA Engenharia, que ganhou a licitação para elaboração dos estudos, projeto básico e executivo, tem até o final de outubro de 2022 para conclusão das obras do canal, que terá 140 metros de largura por cinco de profundidade, embora os rumores indiquem que a largura do canal já foi reduzida para 70 metros.

Bem antes disso a população de Itupiranga espera pelas audiências públicas para esclarecer a boataria e discutir os impactos sociais e ambientais que a intervenção deverá causar. Especuladores (de dentro e de fora do município) já se instalaram nas áreas de praia, longe das rochas, e demarcaram seus domínios na expectativa de conseguirem algum tipo de indenização.

Alguns empresários, especialmente os do setor comercial, estão esperançosos. Acreditam que, quando as obras forem iniciadas, haverá uma boa movimentação de trabalhadores e técnicos na sede do município, aquecendo a economia local. Porém, reconhecem que isso deve ocorrer num curto período. A saída é pensar em formas de compensação mais permanentes, como, por exemplo, a introdução de alternativas sustentáveis de renda e ocupação.

Juscelino Ferreira, da Rádio Sociedade FM, revela que todos os dias seus ouvintes indagam se o canal aberto entre as pedras vai ter espaço para os peixes. Onde serão colocados os materiais removidos do leito do Tocantins?, é outro questionamento frequente, que quase sempre vem acompanhado de outra indagação: “os nossos ribeirinhos vão viver de quê?”.

Sem saber o que responder, o radialista espera que as audiências públicas para discutir o projeto não demorem a acontecer. E que os interessados no derrocamento do pedral possam oferecer compensações para os impactos que podem vir a ocorrer.

Segundo a lenda, aqui naufragou o barco de um morador conhecido por Lourenção

Sem posto de saúde nem recolhimento de lixo

Após 32 anos da implantação da barragem de Tucuruí, a vila de Santa Terezinha do Tauri, em Itupiranga, que fica na área de influência da hidrelétrica, ainda não conta com posto de saúde, recolhimento de lixo, rede de esgoto, água encanada, nem internet.

Ganhou apenas uma escola municipal de ensino fundamental e uma quadra poliesportiva, esta última, construída com recursos do MEC/FNDE, entregue no final do governo da presidente Dilma Rousseff. A quadra coberta custou R$ 513 mil e é o equipamento mais imponente da vila de pescadores.

A justificativa para a remoção das pedras do Lourenção, em Itupiranga, é que a obra vai viabilizar o canal da hidrovia Araguaia-Tocantins e permitir o tráfego de embarcações e comboios num trecho de 500 quilômetros entre Marabá e o porto de Vila do Conde, em Barcarena, por onde escoará uma expressiva carga da produção agrícola, mineral e pecuária dos estados de Goiás, Mato Grosso, Tocantins, Maranhão e Pará.

Além de reduzir custos com a logística que separa as fontes de produção dos mercados internacionais, o transporte hidroviário permite uma diminuição na quantidade de carretas circulando nas estradas brasileiras. Segundo o DNIT, um comboio de 150 metros de comprimento, com capacidade de 6 mil toneladas, equivale a 172 carretas de 35 toneladas de capacidade que seriam retiradas das rodovias e rebaixariam a emissão de poluentes.

O contrato entre o DNIT e a empresa DTA Engenharia, vencedora da licitação, foi assinado no dia 16 de junho de 2016. O valor do serviço foi orçado em R$ 520,6 milhões e a conclusão dos estudos, projeto básico e executivo foi fixada em 58 meses, prevista para abril de 2021.

No percurso da hidrovia, após as rochas de Itupiranga, as embarcações de carga terão que transpor as Eclusas de Tucuruí, elevadores hidráulicos, construídos na gestão do ex-presidente Lula, 25 anos depois da inauguração da hidrelétrica que barrou o Tocantins. Além do derrocamento das pedras, a hidrovia terá que passar também por um rigoroso processo de dragagem de areia que se acumula no leito do rio. A projeção feita pelo DNIT para o volume de carga para o ano de 2015 é 20 milhões de toneladas.

A vila de Itupiranga

Cronograma

A empresa DTA Engenharia já apresentou seu cronograma de execução da obra. Até dezembro deste ano o projeto básico deverá estar concluído. O projeto executivo deve ficar pronto até julho do ano que vem, e em setembro de 2018, a conclusão do Estudo de Impacto Ambiental. Em julho de 2019 a empresa espera conseguir a emissão da licença prévia e em dezembro daquele ano a licença de instalação, quando de fato tem início a obra de derrocamento, cuja previsão é de estar concluída em outubro de 2022.

A DTA Engenharia, que tem sede em São Paulo, alega que não pode falar sobre a obra, cujo responsável é o DNIT.

Por sua vez, o DNIT informou através de sua Assessoria de Comunicação que “provavelmente” não haverá uma audiência pública na Vila de Santa Terezinha do Tauri, onde estão as pessoas que serão mais afetadas pela obra. De acordo com o órgão, o encontro público para discutir as interferências ambientais e sociais do projeto será realizado no centro município de Itupiranga.

Não está definida a compensação ambiental e social para as populações tradicionais vizinhas ao rio por onde será feita a derrocada das pedras. De acordo com o DNIT, essas compensações só serão divulgadas depois que o processo de licenciamento ambiental for concluído. O licenciamento ambiental é que determinará as condicionantes necessárias para fazer a compensação às comunidades presentes no local.

O derrocamento do Pedral será realizado através da explosão das rochas no leito do rio Tocantins, segundo o DNIT. “A obra consiste no desgaste, por meio de explosivos, do pedral que impede a passagem de comboios de carga no período em que o rio fica mais raso, geralmente entre os meses de setembro e novembro.

A população subsiste do rio

Para tanto ocorre a apresentação do plano de fogo, informando a metodologia, tecnologia e medidas de segurança a serem adotadas, bem como descrever e localizar os paióis onde serão armazenados os explosivos; a realização prévia de inventário de integridade das edificações a cada operação; segurança no manuseio dos explosivos de acordo com as normas vigentes; sinalização adequada na área de influência das obras; realização de relatório com informações técnicas para possíveis medidas corretivas; batimetrias de averiguação”, diz a nota do Departamento.

Entretanto, uma vez já definido pelo projeto como as pedras serão removidas, o DNIT não sabe explicar qual o tamanho do impacto dessa obra milionária junto a população local. “O estudo de impacto ambiental, em andamento, determinará se haverá impacto a esse segmento econômico, bem como determinará as condicionantes que necessitam ser implementadas para mitigar os possíveis impactos e aumentar a resiliência da fauna aquática e da comunidade de pescadores”.

Para conhecer a população que será diretamente impactada pela derrocada do Pedral, a DTA Engenharia ainda está fazendo levantamentos socioeconômico da população que vive na área. Mas para isso, segundo o DNIT, utiliza informações de órgãos públicos e de fontes oficiais como IBGE, IPEA, SUS, entre outros órgãos. Ainda não fez, e talvez nem faça, um levantamento in loco junto aos moradores.