O estupro em “O Último Tango em Paris” e a arte que violenta mulheres. Por Nathalí Macedo

Atualizado em 6 de dezembro de 2016 às 12:01
Último Tango
Último Tango

Parece haver uma espécie de consenso problemático entre a maioria dos grandes cineastas: Vale tudo pela arte. Vale, até mesmo, violentar mulheres.

Assim pensa Bernardo Bertolucci, que confessou, em uma entrevista ao programa holandês College Tour, recuperada recentemente pela revista norte-americana Elle, que a atriz Maria Schneider foi estuprada na polêmica “cena da manteiga” em O Último Tango em Paris.
O cineasta (vamos chamá-lo pelo nome?)

O cineasta-estuprador contou que ele e o ator Marlon Brando tiveram a ideia da cena na manhã da gravação, e combinaram que Brando usaria a manteiga como lubrificante anal para estuprar Maria, mas mantiveram o segredo para que a atriz esboçasse uma reação “espontânea”.
A ideia, como o próprio cienasta contou, sem o menor constrangimento, era que a atriz se sentisse humilhada para que a cena fosse verossímil. “Eu queria filmar a reação dela como mulher, e não como atriz.”

Como se não bastassem essas declarações, Bertolucci ainda afirmou que não se arrepende, porque foi melhor para o filme – mesmo que, para isso, uma mulher de apenas dezenove anos precisasse ser estuprada e humilhada em cena.

A violência em nome da arte, pensam eles, pesa menos. Para nós, mulheres, pesa muito mais – promover um estupro e filmá-lo não é apenas criminoso, é sádico e cruel.

Maria declarou forazmente, até 2008, ano de sua morte, que foi abusada na fatídica cena – mas o que é a palavra de uma mulher, atriz iniciante, contraposta à palavra de dois astros do cinema?

Só agora, quando o mandante do crime sexual confessa a barbaridade, o grande público finalmente acredita – ou nem tanto, porque, pasmem, vários internautas tentaram defender Brando e Bertolucci quanto a esse episódio. Há sempre uma maneira de se defender um homem que violenta uma mulher.

“O último tango em Paris”, aliás, não é o único filme em que o corpo feminino é mercadoria para alimentar o sadismo de cineastas e espectadores misóginos.

Em “Laranja Mecânica”, clássico de Stanley Kubrick, uma cena de estupro – consentida, até onde se sabe, e se é que isto é possível – não poderia faltar para expressar a ultraviolência – como se nós, mulheres, já não vivêssemos a ultraviolência ao vivo e em cores.

Também em Preciosa (2009), a protagonista, adolescente, é estuprada, como se fosse preciso exibir em uma tela gigante uma violência sexual para que se possa falar sobre ela.

Ninguém precisa exibir estupro para falar sobre estupro – se o fazem, é por puro sadismo ou, quem sabe, pela mistura explosiva de misoginia e ego de artista. Com alguma sensibilidade, temas delicados como este podem ser tocados sem que seja preciso escancará-los – mas quem se importa?

Quem, como eu, sente repulsa ao saber que Maria Schneider foi estuprada em cena, deve fazer uma reflexão incômoda e não menos necessária: Ela não foi a única – o pornô mainstream nada mais é do que violência sexual filmada e editada.

Para compreender melhor essa afirmação, recomendo o angustiante documentário Hot girls wanted (Netflix), que fala sobre os abusos sofridos pelas atrizes de filmes pornográficos. Um mal estar no mínimo necessário num mundo em que um cineasta confessa que planejou uma cena de estupro e absolutamente nada é feito a respeito.