Lenio Streck e Marco Aurélio, do Prerrô, explicam por que a carta pela democracia não fala de “corrupção”

Atualizado em 7 de agosto de 2022 às 10:18
Marco Aurélio de Carvalho e Lenio Streck

Em artigo no Globo de hoje, os advogados Lenio Streck e Marco Aurélio de Carvalho, do Prerrô, comentam as críticas que a Carta Pela Democracia está recebendo por suas “omissões”. 

“E a corrupção? E a violência? E os cães de rua? E a fome no mundo? E a fila no banco? Ora, para explicar por que não falou de flores, levado às últimas consequências, esse raciocínio nada significa. E por uma razão muito simples: sempre vai faltar alguma coisa para se dizer. Sempre há o que criticar, o que melhorar, enfim”, escrevem.

Em sua coluna no jornal dos Marinhos, o lavajatista Carlos Alberto Sardenberg pontuou que “não há uma palavra sequer sobre corrupção na nova ‘Carta aos Brasileiros’, a ser lida no dia 11 de agosto na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, em São Paulo. Celso de Mello, que se formou naquela escola, deverá ser o porta-voz do documento”.

Lenio e Marco Aurélio dão uma resposta aos oportunistas que só vêem defeitos num manifesto que virou um divisor de águas em matéria de defesa das instituições diante da barbárie bolsonarista: 

Lemos que a já vitoriosa Carta aos Brasileiros, redigida por professores e antigos alunos da Faculdade de Direito da USP, não falou em corrupção.

Para alguns, a Carta é omissa, porque não fala de coisas que poderiam comprometer a democracia. Também há críticas ao ex-ministro Celso de Mello, por este ter assinado algo que vai na contramão do que dissera em um julgamento.

A Carta, de fato, não fala em corrupção.

Também a Carta não fala do papel de determinados veículos da mídia e de determinados jornalistas em suas questionáveis relações com a Operação Lava Jato, que, como se sabe e não se pode negar, cometeu inúmeros crimes para supostamente combater crimes. E que, sem a Lava Jato, o governo atual não existiria…

A Carta também não fala dos 700 mil mortos pela COVID. Da asfixia de Manaus. Do aviltamento das Instituições. Das emendas constitucionais bichadas. Do nefasto orçamento secreto. Da fome que atinge mais de 30 milhões de brasileiros. Da degradação humana.

A Carta omite a bala perdida. O racismo crescente. O esquecimento da violência de gênero. Do meio-ambiente esquecido. Das mortes de Bruno e de Don. Das mortes de Marcelo, em Foz do Iguaçu, e de Genivaldo, em um camburão da Polícia Rodoviária Federal.

Não, de fato, a Carta não fala das Universidades sucateadas. Dos pastores do MEC, das compras exóticas dos quartéis e de coisas desse tipo.

A Carta fala, sim, da condição fundamental de possibilidade de uma República: a existência da democracia. A Carta trata da democracia porque ela está em risco por todas as coisas que a Carta não falou. Esse é o ponto.

A história e a literatura nos socorrem para entender os críticos da bela iniciativa a qual aderimos com orgulho e alegria. Arquíloco, da poesia lírica grega, dizia: a raposa sabe de muitas coisas, mas o ouriço sabe de uma grande coisa. No século XX, o grande filósofo Isaiah Berlin usou essa mesma ideia para dividir pensadores entre raposas e ouriços: as raposas reconheciam diferentes ideias e valores; já os ouriços explicavam e viam as coisas todas por meio de uma única ideia ou princípio mestre.

Num mundo complexo, ser raposa é mais fácil. Raposas simplificam. Mas, como o ouriço de Arquílogo e Berlin, a Carta centra foco nas coisas grandes que causam as outras.

O que estamos vendo é a mobilização pacífica e engajada de amplos setores e segmentos da sociedade brasileira na defesa firme e intransigente do Estado de Direito, princípio básico que pode salvar a nossa democracia. Um movimento plural, sim, mas que sabe de uma grande coisa. Como o ouriço. Como deve ser.

Espiolhar defeitos da Carta aos Brasileiros pode dar uma lacração típica de raposa. Mas o Ouriço sabe mais. “Estado de Direito, democracia, ok, mas e a corrupção?”, pergunta a raposa. Pois é. O país pegando fogo e um certo lulocentrismo ainda impede algumas pessoas de enxergarem um palmo à frente do nariz.

E a corrupção? E a violência? E os cães de rua? E a fome no mundo? E a fila no banco? Ora, para explicar por que não falou de flores, levado às últimas consequências, esse raciocínio nada significa. E por uma razão muito simples: sempre vai faltar alguma coisa para se dizer. Sempre há o que criticar, o que melhorar, enfim.

Diante de uma Carta em defesa da democracia, num dos momentos mais críticos da história do país, assinada amplamente por gente de todas as correntes, o foco tem que se voltar para as convergências e para as questões fundamentais .

A raposa que se quer ouriço não é nenhum dos dois. As vezes as raposas falam muito, mas não dizem nada.