
A declaração de Paulo Guedes em que diz que a França é “insignificante” não apenas atrapalhou as relações com o país, mas parece tê-las transformado em impossíveis com o governo Bolsonaro.
Depois do Quai d’Orsay, o ministério francês das Relações Exteriores, a deputada francesa Eleonore Caroit também reagiu às declarações do ministro da Economia. “Não apenas são excessivas e inaceitáveis, mas são falsas”, afirma em entrevista ao DCM.
Na Assembleia Nacional, os franceses que vivem no exterior têm representantes. Caroit representa os que vivem na América Latina. Ela avalia que a fala do ministro brasileiro revela a completa defasagem do governo Bolsonaro com o dinamismo das grandes e pequenas empresas francesas no Brasil.
“A França é o primeiro empregador (estrangeiro). As cifras são boas. Há uma cena muito dinâmica e inovadora da French Tech no Brasil.”
Para ela, que conta ter aprendido o português ouvindo a música brasileira dos anos 1970, com parte da família vivendo no Brasil e os filhos que não hesitam a escolher o país como primeiro destino de viagem, o governo atual do país representa um verdadeiro contraste. Sobretudo desde a crise diplomática do primeiro ano de mandato bolsonarista.
“Não há uma vontade de pacificar essas relações por parte do Brasil. A França se esforçou. Sobretudo com tais declarações de um ministro-chave, não vemos como podemos discutir ou retomar um diálogo com o governo de Bolsonaro”.
Um contraste com a hospitalidade que ela aponta como característica da sociedade brasileira. Um contraste com as relações bilaterais durante os governos Lula.
“Lula já foi chefe de Estado. Sabemos como foi. Na época era Chirac o presidente francês, alguém que não necessariamente compartilhava das ideias políticas de Lula, e as relações franco-brasileiras eram muito boas.” Uma das razões pelas quais ela prefere ver o ex-presidente eleito em outubro.
DCM: Qual a sua reação às declarações do ministro brasileiro da Economia, que disse que apertaria o botao do “foda-se” para a França, país que ele disse tornar-se “insignificante” comparado à China?
Eleonore Caroit: Eu falo em termos pessoais. Eu não represento o Estado francês. Eu represento os franceses que me elegeram e o conjunto dos franceses. Eu não represento a posição diplomática da França.
Toda pessoa racional deve ter a mesma reação que o Quai d’Orsay (ministério francês das Relações Exteriores). Paulo Guedes está na provocação e no exagero. Penso portanto que suas declarações são inaceitáveis e exageradas da mesma maneira como suas declarações sobre Brigitte Macron não tinham nada a ver ou sobre aspectos pessoais de dirigentes franceses, o que eu denuncio da maneira mais firme possível.
Sobre o estado das relações comerciais entre a França e o Brasil, constato que a França é o primeiro empregador (estrangeiro). As cifras são boas. Amigos de longa data franceses que vivem no Brasil, que são autoempreendedores, pessoas que têm startups, que têm pequenas empresas, afinal fala-se muito das empresas do CAC40 (bolsa de valores de Paris) presentes no Brasil, mas há uma cena muito dinâmica e inovadora da French Tech no Brasil.
Penso que suas declarações (de Paulo Guedes) são falsas. Não apenas são excessivas e inaceitáveis, mas são falsas. Não consideram não apenas a amizade de 200 anos, como tampouco as relações econômicas atuais entre França e Brasil. Por isso são ainda mais lamentáveis.
Justamente não são as primeiras declarações infelizes do governo Bolsonaro sobre a França e seus representantes. Qual o balanço das relações bilaterais entre França e Brasil durante o mandato de Bolsonaro?
Foi muito complicado, principalmente por causa da questão do acordo da União Europeia com o Mercosul por razões com as quais eu concordo totalmente.
Penso que todos temos um dever de proteger nossa casa comum que é o nosso planeta e que um acordo que não ia no sentido certo devia ser revisto.
Houve uma crise diplomática e política em 2019. Observando-a com um certo recuo, minha impressão é de que não há uma vontade de pacificar essas relações por parte do Brasil.
A França se esforçou. O ministro Le Drian (chanceler) foi até o Brasil. Ações francesas foram realizadas. Hoje, sobretudo com tais declarações de um ministro-chave (do Brasil), não vemos como podemos discutir ou retomar um diálogo com o governo de Bolsonaro.
Uma eventual reeleição de Bolsonaro seria favorável a essas relações bilaterais?
De jeito nenhum. Eu não vejo como a eleição de Bolsonaro poderia ajudar as relações franco-brasileiras. Eu não tomo posição na política interna do Brasil. Não cabe a mim dizer que é preciso votar em tal candidato.
Como eu represento todos os franceses que moram no Brasil, inclusive os franco-brasileiros, independentemente de sua tendência política, eu não posso me permitir a pedir votos. Mas eu não vejo como a reeleição de Bolsonaro poderia melhorar as relações entre os dois países.
Essas declarações hostis ou ataques do governo Bolsonaro à França se traduzem em hostilidade no quotidiano dos franceses no Brasil?
Não tenho a impressão de que seja o caso. Não me chegaram tais relatos. Há uma defasagem entre a realidade que vivem os franceses ou os franco-brasileiros no Brasil hoje… Há uma certa dificuldade em relação a certas mudanças a partir da eleição de Bolsonaro, coisas que mudaram, no sentido negativo, na minha visão, que dificultaram não somente a vida dos franco-brasileiros mas de todos os brasileiros.
Não tenho a impressão de que os franceses foram alvo de uma discriminação particular como se pôde observar sob Trump, por exemplo no chamado a um boicote a produtos franceses.
Pelo contrário. Dialogando com os franceses do Brasil, eu tive a impressão de que havia um grande dinamismo, de que eles estavam muito bem integrados na sociedade brasileira e que estavam desenvolvendo e criando parcerias na sociedade civil brasileira, em defasagem com as declarações do ministro brasileiro.
Qual seria o impacto de uma eleição de Lula nas relações bilaterais franco-brasileiras?
Lula já foi chefe de Estado. Sabemos como foi. Na época era Chirac o presidente francês, então alguém que não necessariamente compartilhava das ideias políticas de Lula, e as relações franco-brasileiras eram muito boas.
Havia um bom entendimento, uma forte cooperação. O que eu quero dizer é que Lula era bastante francófilo. Hoje, ele tem relações muito boas com certos dirigentes franceses, com Emmanuel Macron. Então eu tenho a impressão de que (as relações franco-brasileiras) ocorreriam muito bem.
Você é a deputada francesa da América Latina. Qual dos dois seria melhor para uma maior integração entre a América Latina e a União Europeia?
Eu penso já ter respondido essa pergunta na medida em que minha capacidade e minha reserva me permitem. Eu me atenho ao meu dever de não pedir para votar em tal candidato, mesmo se eu tenha uma forte preferência por Lula, pois considero que Jair Bolsonaro tem posições inaceitáveis.
Meu papel enquanto deputada dos franceses do exterior é manter uma certa distância pois represento a todos os franceses, tenham eles votado em mim ou não.
Mas em relação à minha posição, eu prefiro que Lula ganhe. Penso que, de maneira bastante objetiva, visto o que aconteceu nos últimos três anos, que isso (a vitória de Lula) seria melhor para a União Europeia, à integração e à tomada de decisões pela preservação do meio ambiente e da proteção da Amazônia. Vimos o que aconteceu nesses últimos anos sob o regime Bolsonaro.