A carência de fundamento científico nos ataques de Pasternak à psicanálise

Atualizado em 30 de julho de 2023 às 18:23
Natalia Pasternak. (Foto: Reprodução)

Por Guilherme Magnoler Guedes de Azevedo

A finalidade deste texto é trazer para discussão e reflexão a carência de fundamento científico nas declarações da autora de que a psicanálise seria uma “fraude”, uma “pseudociência”.

1) Dora não tinha 14 anos quando Freud a atendeu, mas dezoito. Houve confusão da autora entre a cena na loja do Sr. K. e a data do tratamento (Freud, 1905);

2) A respeito das afirmações de que os psicanalistas consideram o material do paciente “como se fossem evidências da presença de um inconsciente recheado de desejos” (p. 191), mas que na realidade “O sistema todo pressupõe o que deveria demonstrar” (p. 191); de que o paciente colabora “ajudando o analista a construir uma narrativa fantasiosa” (p. 191), e ao concordar com o analista “prova” que este “está no caminho certo” (p. 191), mas se negar a fantasia, “também prova que o analista está no caminho certo” (p. 191)” (nesse caso o analista usaria a negativa como prova da resistência), é preciso lembrar que esse argumento, sobre a existência de um “ciclo vicioso” que faz com que o analista esteja sempre certo, é tão antigo quanto equivocado, pois o analista não recebe o sim do paciente como sim e o não como não. Para melhor e mais abrangente conhecimento, sugiro a leitura de Construções em análise (Freud, 1937);

3) Sobre a proposição da autora de que o crédito dado a Freud por ter descoberto o inconsciente é uma “quimera” (p. 195), numa tentativa de desqualificar o mérito do pai da psicanálise, sob o argumento de que já em Leibniz havia a ideia de um inconsciente no “cérebro” (p. 195), é notório que essa ideia não existia apenas em Leibniz, mas, também, em Breuer, Janet, Schopenhauer, Herbart, etc. O motivo pelo qual se atribui (não só os psicanalistas) a Freud a descoberta do inconsciente (dinâmico) é o mesmo pelo qual atribui-se a Darwin a descoberta da Evolução das Espécies, ideia que já existia desde a Antiguidade (o avô de Darwin, por exemplo, era um evolucionista e Darwin apresentou sua teoria junto com outro autor: Alfred Wallace), qual seja: pelo conjunto probatório, sistematização, teorização,  profundidade e originalidade com a qual os fatos são interpretados, e não por ter sido o primeiro a abordar o tema.

4) Na página 183 do livro, encontramos a seguinte passagem: “Essas terapias [psicodinâmicas] arrogam-se uma posição privilegiada na hierarquia do conhecimento clínico, argumentando que suas elaborações teóricas e práticas clínicas encontram-se fora – de fato, acima – do alcance da ciência”. Porém, Freud considerava a psicanálise uma ciência, portanto, não poderia tê-la colocado acima da ciência; o mesmo valendo para seus seguidores.

5) Já a afirmação de que “Também é falsa a ideia de que as ciências ditas “hermenêuticas” ou interpretativas dispensam regras e não buscam produzir leis gerais” (p. 187), não traz qualquer clareza sobre qual teria sido o ramo da psicanálise aludido ou qual psicanalista teria feito a afirmação. Contudo, não podemos reconhecer a postura de dispensar regras e a ausência da busca de leis gerais como fazendo parte de nossa ciência.

6) Ainda na página 187 é dito que: “Esse inconsciente – que já foi comparado a uma “mente paralela” ou “calabouço” – seria um repositório para onde a mente baniria os desejos inconfessáveis, pensamentos vergonhosos…” (p. 187) Grave equívoco. Na verdade, trata-se do contrário. O inconsciente freudiano se ampara exatamente em concepção oposta, motivo pelo qual o autor abandonou a teoria dos Estados Hipnoides, de Breuer, e nunca aceitou utilizar o termo subconsciente. O sujeito freudiano se constitui num movimento dialético entre o consciente e o inconsciente (como sistemas). Para melhor compreensão do assunto, sugiro a leitura do capítulo sobre o Sujeito Freudiano, no belíssimo livro do psicanalista americano Thomas Ogden, chamado Os sujeitos da psicanálise.

7) A menção de que os psicanalistas “subestimam” (p. 191) que suas inclinações teóricas, opiniões políticas e preconceitos podem influenciar o paciente indica incompreensão ou desconhecimento do conceito de contratransferência, que se tornou terreno comum de todas as linhas de pensamento psicanalítico.

8) Sobre repressão a autora diz que “Do ponto de vista dos estudos modernos sobre o funcionamento da memória, todo o conceito de repressão é problemático. Primeiro, porque sabemos que as memórias não são exatamente registradas, como arquivos num hard-drive, mas reconstruídas cada vez que as evocamos – e muitas dessas reconstruções incluem interferências de outras memórias, ou mesmo da imaginação…“ (p. 195 – 196). E em seguida: “Mesmo quanto partes do suposto conteúdo reprimido parecem vir à tona durante um processo terapêutico, não há como distingui-lo de fabricações imaginárias.” (p. 196). Essa concepção da repressão está radicalmente errada. Portanto, vale esclarecer: Freud deixou de acreditar na fidelidade do registro das memórias em 1897, e não há um único psicanalista que não saiba que toda lembrança é uma mistura de fatos e imaginação. Sugiro que a autora se inteire sobre o conceito de fantasia.

9) A autora, sabendo que poderia ser questionada e confrontada de que seus ataques e infundados argumentos seriam frutos de “recalques”, se antecipou e trouxe o tema para discussão, só que com um sinal de negativo, ou seja, com a não alcançada intenção de convencer que os ataques não seriam fruto de recalque. Acontece que a psicanálise também tem um conceito próprio para esses casos nos quais o “recalcado” se permite aparecer, desde que precedido de um sinal de negação. Poderia ser útil à autora a leitura e o estudo de A Negativa (Freud, 1925). Também poderia se inteirar sobre a diferença entre estar consciente no sentido descritivo e no sentido dinâmico. Portanto, sim, acreditamos e continuaremos a acreditar que ataques carregados de ódio, depreciativos e sem fundamentação ou base científica podem, sim, estar amparados em motivações inconscientes.

É importante lembrar que a psicanálise nasce da incapacidade dos métodos tradicionais em oferecer respostas às doenças mentais. Não que não tenha se tentado descobrir a fisiologia e a anatomia do inconsciente, mas as tentativas fracassaram. É justamente porque o método tradicional não alcança a compreensão dos fenômenos mentais que os métodos hermenêuticos são necessários. Não esqueçamos que o movimento iniciado pela psicanálise retirou do limbo uma infinidade de doentes mentais que eram desprezados por cientistas para os quais o inconsciente não existia, e que lidavam com esses pacientes com base no ultrapassado e desumano pensamento de que se a ciência deles não os entende, então eles não estariam doentes, seriam fraudes.

A discussão sobre o nível de cientificidade das ciências humanas é antiga e pertinente, e jamais nos furtamos de enfrentá-la. Desconheço, contudo, declaração de que a psicanálise esteja acima das ciências naturais ou que seus métodos sejam os mesmos. O que se necessita são trocas de ideias com atitude de respeito pelo saber constituído, lidar com preconceitos e mente aberta para todos os campos do conhecimento.

Buscamos aqui exatamente isso: esclarecer algumas das inconsistências encontradas e apontar nossos pontos de vista sobre o assunto. Duas coisas chamam a atenção no referido livro: o nível de violência dos ataques da autora e as falhas científicas e acentuado desconhecimento da mesma sobre a matéria a que se propôs debater e depreciar. Nenhuma delas combinam com uma postura científica.

Texto originalmente publicado no site da Sociedade Brasileira de Psicanálise

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