A hegemonia de Lula no Nordeste e o preconceito dos que não entendem o que é ser um nordestino. Por Carlos Fernandes

Atualizado em 24 de agosto de 2018 às 19:08
Lula no Nordeste (Foto: Ricardo Stuckert/Instituto Lula)

Após mais uma rodada de pesquisas eleitorais em que três institutos distintos, MDA/CNT, Ibope e Datafolha, terem confirmado a liderança isolada de Lula em praticamente todos os estados da federação com especial preponderância no Nordeste, não demorou para que os arautos da moralidade do velho jornalismo e da própria política viessem a manifestar o preconceito enrustido e enraizado contra nordestinos.

Não que seja exatamente uma novidade.

Como esquecer do ruminante Diogo Mainardi, no indefectível Manhattan Connection, acusando o povo do Nordeste de ser “bovino” após a vitória de Dilma Rousseff na sua reeleição?

Como esquecer o movimento separatista criado a partir desse momento por, digamos, supremacistas regionais em que Sul, Sudeste e Centro-Oeste queriam “expulsar” o Nordeste do “seu” Brasil?

Como esquecer os insignes médicos que tentaram relacionar o surto de microcefalia em bebês no Nordeste com a vitória de Dilma na região?

Retóricas a parte, dessa vez o primeiro – sem nenhuma surpresa – a questionar a inteligência dos nordestinos, vem da própria Globo. Merval Pereira em sua coluna tenta “explicar”, à sua maneira, a dificuldade que Fernando Haddad enfrentará no Nordeste caso confirme-se a inelegibilidade de Lula.

Segundo o mais mortal dos imortais da Academia Brasileira de Letras, Haddad, no Nordeste, não passa de um desconhecido que o povo sequer sabe pronunciar o nome. “Andrade” seria o que a sua própria teoria poderia chamar de “nordestinização” diante palavras mais difíceis.

O que Merval quer levar a crer é que nós, nordestinos, ou pelo menos os que não votam conforme à sua vontade, mais do que ser incapazes de fazer uma análise político-conjuntural, possuímos deficiência cognitiva a ponto de nos classificar como uma sub-raça cujo bem-estar só poderia ser proporcionado a partir da tutela dos iluminados das regiões mais abastadas do país.

É ultrajante, mas, como disse, vindo de gente da Globo esse discurso não causa qualquer surpresa. No entanto, o que dizer quando quem embarca nessa narrativa são políticos que se criaram e fizeram suas carreiras no próprio Nordeste?

Nesta sexta (24) Ciro Gomes voltou a cantarolar a sua ladainha de que a cúpula do PT “explora a boa fé do povo” ao agitar a candidatura de Lula.

“Fraude” é o termo que o presidenciável utiliza para qualificar a maior e mais contundente denúncia contra o golpe parlamentar de 2016 e contra a partidarização do poder judiciário brasileiro.

É no mínimo curioso que Ciro não tenha utilizado essa palavra, fraude, uma única vez para qualificar as escandalosas movimentações do sistema judicial desse país para impedir Lula de ter o seu direito legal e constitucional de se candidatar.

Talvez mesmo por ter nascido no interior de São Paulo, a despeito de ter passado a maior parte da sua vida no Ceará, jamais tenha deixado esse ranço de certa superioridade junto aos seus semelhantes do nordeste brasileiro.

O que Merval Pereira e, ainda mais preocupante, Ciro Gomes, ainda não perceberam, é que o povo não precisa da guarida de certos intelectuais para determinar o que é melhor para si próprio.

Da mesma forma, esse mesmo povo que hoje dá larga vantagem nas intenções de votos a Lula, sabe exatamente o porquê de sua candidatura está sendo contestada sob as formas mais covardes e antidemocráticas já vistas após a redemocratização do Brasil.

Mais ainda, o povo brasileiro como um todo, e nós nordestinos mais especificamente, temos plena capacidade de entender e avaliar as implicações do mais do que provável impedimento de Lula nessas eleições.

Se ainda assim, o povo ao qual julgam estarem “enganando” continua firme a acompanhar essa ideia, não será nem um nem outro a lhes demover desse ato de coragem e solidariedade.

É triste ter que aconselhar a um jornalista a se limitar a fazer jornalismo e a um político a se limitar a fazer política. Mas em tempos de profunda exceção, não custa lembrar que o povo, letrado ou não, rico ou não, branco ou não, hétero ou não, é a única fonte do poder.

Portanto, cabe a ele e só a ele, o povo, decidir sobre o seu próprio destino. Aos ilustres do jornalismo e da política, nada mais do que acatar humildemente a soberana vontade popular.