A infância da Rainha do Crime. Por Camila Nogueira

Atualizado em 13 de setembro de 2015 às 19:53
A jovem Agatha
A jovem Agatha Miller

Uma entrevista com Agatha Christie (1890 – 1976), com base em sua autobiografia. Nossa outra entrevista com Agatha, publicada há alguns meses, aborda sua carreira como romancista policial.

Mrs. Christie, o que a levou a escrever sua autobiografia?

Minha intenção era gozar dos prazeres da memória, sem me apressar, e escrever algumas páginas de vez em quando, sabendo que essa tarefa poderia se prolongar durante anos e anos. Mas por que a chamo de “tarefa”? É um prazer. Uma vez, vi um velho pergaminho chinês que adorei – retratava um velho sentado debaixo de uma árvore, jogando cama de gato. Chamava-se: – “Velho a gozar dos prazeres do Ócio”. Nunca me esqueci dele.

Então vamos dar início. Como foi sua infância?

Uma das maiores sortes que podemos ter na vida é uma infância feliz, e eu tive uma infância muito feliz. Tinha uma casa e um jardim que amava; uma babá sábia e paciente; como pai e mãe, duas pessoas que se amavam e que foram um sucesso como casal e como pais. Olhando para trás, penso que nosso lar era muito alegre. Tal devia-se, em grande medida, ao meu pai.

Como era seu pai, Mrs. Christie?

Meu pai era um homem muito afável. Atualmente, subestima-se o valor da afabilidade… As pessoas tem tendência a perguntar se um homem é inteligente, trabalhador, se ele contribui para o bem estar de sua comunidade etc. Meu pai não era particularmente inteligente, mas tinha um bom coração, afetuoso e simples, e preocupava-se honestamente com os outros. Era um homem com um senso de humor magnífico. Não havia nele maldade nem inveja e era fantasticamente generoso – mas a verdade é que, de acordo com o padrão atual, meu pai não suscitaria muita aprovação.

Oh! Por que?

Ele era um homem preguiçoso. Estávamos nos dias dos rendimentos independentes e quem tinha um rendimento independente não trabalha. Ninguém esperava que trabalhasse. Tenho uma forte desconfiança de que meu pai, de qualquer maneira, não seria um bom trabalhador.

E como era sua mãe?

Minha mãe tinha uma personalidade encantadora, mas era excessivamente tímida, insegura e melancólica. Papai sempre lhe dizia que ela era totalmente desprovida de senso de humor. A essa acusação, ela respondia, em tom magoado: “Só porque não acho graça alguma nas suas piadas…”, e ele ria às gargalhadas.

Que fofa!

Era cerca de dez anos mais nova do que meu pai e o amava com devoção desde que era uma criança. Enquanto ele era um jovem despreocupado a saltitar entre Nova York e o sul da França, ela ficou em casa pensando nele, escrevendo alguns poemas e bordando-lhe uma carteira. A propósito, meu pai conservou essa carteira a vida toda. Um romance tipicamente vitoriano.

A senhora disse que seus pais tiveram um casamento muito feliz e bem-sucedido. O que a senhora entende por isso?

Até a data, só conheci quatro casamentos realmente bem sucedidos – um deles sendo, claro, o dos meus pais. Haverá uma fórmula para o sucesso? Não me parece. Dos meus quatro exemplos, um deles era o de uma garota de dezessete anos com um homem quinze anos mais velho. De início, ele protestou, dizendo que ela não podia saber ainda o que queria. Ela respondeu que sabia melhor do que ele o que queria, já que o amava há mais de três anos. O outro exemplo é de um jovem com uma mulher quinze anos mais velha – uma viúva. Ela o recusou durante um bom tempo, pois tinha receio de se comprometer com um homem tão mais novo do que ela. Cedeu eventualmente e eles viveram muito felizes até a morte dela, trinta anos depois.

A senhora nos contaria a história de como seus pais se conheceram?

É claro. Para isso, preciso retomar a história da minha mãe, Clara Boehmer, que não teve uma infância muito feliz. Seu pai morreu e minha avó ficou viúva aos vinte e sete anos, com quatro filhos. Foi então que sua irmã mais velha, que se casara com um americano rico, se ofereceu para adotar um dos seus filhos. Era uma oferta impossível de recusar e, dos quatro filhos, três rapazes e uma menina, minha avó escolheu a menina. Creio que pareceu-lhe que os rapazes poderiam muito bem encontrar seus próprios caminhos na vida, mas minha mãe sempre acreditou que a mãe tinha mais afeição pelos seus irmãos do que por ela.

A mudança de casa foi difícil para a sua mãe?

Penso que o ressentimento que sentiu, a profunda mágoa de ser indesejada e a saudade da família tingiram sua atitude perante a vida. Isso a tornou insegura e desconfiada. A tia que a adotou era uma mulher doce, simpática e bem humorada, mas não tinha sensibilidade com os sentimentos de uma criança.

A senhora acha que sua avó tomou a decisão correta ao enviar a filha para viver com a irmã?

É difícil julgar, mas acho que ela errou. Minha mãe teve todas as vantagens de um lar muito confortável e de uma boa educação – mas o que perdeu, e nada poderia substituir, foi a vida alegre, com os irmãos, na sua própria casa. Muitas vezes vi perguntas de pais ansiosos que não sabem se devem ou não deixar um filho ir viver com terceiros por causa das “vantagens que terá e que eu não posso lhe proporcionar, como uma educação de primeira classe”. Tenho sempre vontade de gritar: “Não! Não deixem a criança ir! O seu próprio lar, a sua própria família e a segurança de pertencer a algum lugar e a alguém – que significa a melhor educação do mundo em comparação com isso?”

E quando foi que Fred Miller, seu pai, entrou na história?

O verdadeiro conforto da vida da minha mãe eram as visitas periódicas do enteado da tia – o chamado “primo Fred”. Nessa altura, ele tinha cerca de vinte anos e era sempre muito simpático com sua pequena prima. Um dia, Clara o ouviu dizer para a madrasta que ela tinha lindos olhos. Se apaixonou por ele imediatamente. Nos Estados Unidos, um velho amigo da família disse certa vez ao meu pai: “Freddie, um dia você ainda vai se casar com sua priminha inglesa”. “Clara? Mas ela é só uma criança!”, ele respondeu entre risos. Porém, sempre teve um sentimento especial por aquela criança sentimental que o adorava. Guardava suas cartas e poemas infantis e, depois de uma longa série de namoricos com belezas da sociedade e com jovens espirituosas em Nova York, papai voltou para a Inglaterra e pediu em casamento a priminha sossegada.

E foram felizes para sempre…

Ela o rejeitou.

Oooops.

Certa vez perguntei a ela a razão por tê-lo recusado, uma vez que o amava há tanto tempo. E sua resposta foi: “Porque eu era gorda”. Um motivo extraordinário mas, para ela, válido. Depois de algum tempo, meu pai a pediu em casamento novamente e ela aceitou. Tiveram três filhos: Madge, Monty e eu.

Sua mãe não esperava que seu pai voltasse para a Inglaterra e desposasse a priminha sossegada?

Um belo dia, meu pai perguntou isso a ela. Ela negou veementemente, mas depois hesitou e admitiu que tivera uma fantasia dessa espécie. Era uma fantasia sentimental tipicamente vitoriana. O meu pai faria um casamento abastado com uma beldade da sociedade, mas seria infeliz. Voltaria à Inglaterra para procurar sua discreta priminha Clara. Infelizmente, Clara, uma pobre inválida, já estaria à beira da morte, permanentemente sentada em um sofá. No final da fantasia, ela concedia-lhe sua benção com seu último suspiro. “Sabe”, explicou, “é que eu pensava que não pareceria tão gorda se estivesse deitada em um sofá, com uma manta bonita por cima”.

Nos romances vitorianos, havia uma predileção muito curiosa por pessoas delicadas, inválidas e/ou frágeis… E, é claro, pela morte prematura…

A morte prematura e a invalidez eram tanto uma tradição do romance na época vitoriana como a resistência parece ser hoje em dia. Naqueles tempos, não havia jovem, até onde eu sei, que admitisse ser vigorosa. Minha avó sempre disse com complacência que era extremamente delicada quando criança, “ninguém esperava que chegasse à idade adulta”; bastante um leve golpe na mão durante as brincadeiras para desmaiar. Minha tia-avó também se dizia muito delicada. Uma delas viveu até os noventa e dois anos e a outra até os oitenta e seis, e eu realmente duvido que alguma vez tenham sido delicadas. No entanto, uma sensibilidade extrema, desmaios constantes e morte prematura (após um declínio dramático) estavam na moda.

Agora que conhecemos seus pais, a senhora poderia nos contar um pouco sobre seus irmãos?

Atualmente, parece-me que muitas vezes é pelo nosso próprio prestígio que queremos que nossos filhos tenham sucesso. Os vitorianos não eram assim… Eles olhavam desapaixonadamente para os filhos e decidiam-se quanto às suas capacidades. Na nossa família, minha irmã foi – desde muito cedo – reconhecida como “a inteligente”. Não há dúvidas de que ela era o cérebro da família. Era espirituosa, muito divertida, com a resposta sempre na ponta da língua.

E seu irmão?

Meu irmão, um ano mais novo do que ela, tinha um imenso charme pessoal, mas de resto era intelectualmente atrasado. Imagino que meu pai e minha mãe tenham percebido de imediato que ele seria o filho “complicado”.

E que tipo de filha a senhora era?

Eu própria sempre fui reconhecida como “a mais lenta” da família. Tinha, também, muitas dificuldades de expressão. Era sempre difícil para mim colocar em palavras o que queria dizer. Essa é uma das razões pelas quais me tornei escritora.

Mrs. Christie, a senhora deseja mencionar mais alguma passagem da sua infância?

Devo contar a primeira vez que senti medo. Foi pouco antes de fazer cinco anos. A babá e eu estávamos colhendo narcisos em um dia de primavera. Entramos por um portão aberto e continuamos a colher. Nosso cesto estava ficando cheio quando ouvi uma voz áspera e zangada: “O que é que pensam que estão fazendo aqui?”, gritou um homem. A ama disse que não estávamos fazendo mal algum, apenas apanhando flores. “Invadindo propriedade privada, é isso que estão fazendo. Saiam daqui. Se não estiverem do lado de fora daquele portão dentro de um minuto, vou cozinhá-las vivas, percebem?”

Então a senhora entendeu as palavras dele literalmente?

Sim, e quando nos encontramos finalmente em segurança, no caminho, eu quase desfaleci de alívio. Minha babá reparou que eu estava pálida e trêmula e perguntou, gentilmente, se eu havia pensado que ele estava falando sério e se realmente pensei que ele me cozinharia viva. Acenei, sem dizer nada. Tinha visualizado a cena toda. Um caldeirão fumegante em cima de uma fogueira – e eu sendo atirada lá para dentro. Os meus gritos de agonia. Para mim, tudo era mortalmente real.

Pobrezinha! Eu também morreria de medo.

Havia também uma brincadeira que minha irmã fazia que, ao mesmo tempo, me fascinava e aterrorizava. Chamava-se simplesmente “a irmã mais velha”. A tese era que, na nossa família, havia uma irmã mais velha do que eu e do que Madge. Era louca e vivia numa gruta, mas às vezes vinha até nossa casa. Era igualzinha à minha irmã, exceto na voz, que era bastante diferente. Era uma voz aterrorizante, uma voz suave e cruel. “Sabe quem sou, não sabe, querida? Sou a sua irmã Madge – não pensa que sou outra pessoal qualquer, pois não? Por que pensaria uma coisa dessas?

Mrs. Christie, e quanto ao amor? Quando a senhora se apaixonou pela primeira vez?

Aos quatro anos. Foi uma experiência maravilhosa. O objeto da minha paixão era um amigo do meu irmão, de cabelos dourados e olhos azuis. O rapaz não fazia a menor ideia das emoções que despertava em mim – como haveria de saber? Gloriosamente desinteressado na irmã mais nova de seu amigo Monty, se alguém lhe tivesse perguntado provavelmente diria que eu não gostava dele. O excesso de emoção obrigava-me a seguir na direção oposta se o via aproximar-se, e, sempre que nos encontrávamos, eu mantinha a cabeça resolutamente baixa. Minha mãe repreendeu-me docemente – “Eu sei que você é tímida, amor, mas tem que ser educada. É má educação estar sempre virando a cara ao Philip, e se ele falar com você não pode responder entredentes”.

Que bonitinha! O primeiro amor é uma coisa realmente meiga.

O primeiro amor não exige nada; nenhum olhar, nenhuma palavra. É adoração pura. Somos sustidos por ele e caminhamos no ar, criamos na nossa mente ocasiões heroicas em que poderemos ser úteis ao nosso amado. Entrar em um campo das vítimas da peste para cuidar dele. Protegê-lo de uma bala fatal com o próprio corpo. Salvá-lo do fogo. Na verdade, tudo o que tenha captado a nossa imaginação em uma história. Nestas fantasias, nunca há um final feliz. Somos abatidas, morremos queimadas ou sucumbinos à peste. O herói nem sequer sabe do sacrifício supremo que fizemos.

A senhora era, eu imagino, uma leitora ávida. O que gostava de ler quando pequena?

Meu romance favorito era sobre uma menina alemã (inválida, naturalmente) que passava o dia inteiro deitada olhando pela janela. A pessoa que deveria tomar conta dela, uma jovem egoísta e amante do prazer, saiu da casa um dia para ver a procissão. A inválida debruçou-se demais, caiu e morreu. A criada passou o resto da vida em sofrimento, pálida e assombrada pelos remorsos. Eu lia todos estes livros macabros com grande satisfação.