A mulher do banqueiro e o jornalista

Atualizado em 10 de junho de 2013 às 10:13

Uma ficção por Fabio Hernandez.
alphonse+mucha

Pedro estava na cama, entre livros e revistas. Dormira lendo A Praia, um romance no qual um casal inglês tem problemas na lua de mel no começo dos anos 60, antes da pílula e da liberação sexual.

Era cedo para ele, pouco mais de oito da manhã. Desde sempre Pedro fora um notívago, capaz de atravessar com facilidade uma madrugada numa redação.

Tocou seu celular, e pelo toque personalizado ele sabia quem era.

“Carol?”

“Pedro. Ouve.”

Chegaram aos ouvidos de Pedro sons difusos de uma canção. Mas Pedro a reconheceu. Era um clássico de Donna Summer, MacArthur Park.

“Ouvi essa música e tive que ligar pra você, Pedro. Não é um pretexto. Eu simplesmente tinha que falar com você. Essa música. Puxa. Ela é a nossa história.”

Carol. A bela, filantrópica, inteligente e calculista mulher de um banqueiro que preferira o casamento a Pedro.

Pedro entendera e apoiara a decisão de Carol, ainda que dolorida para ele. Um jornalista, ele era apenas um jornalista.

Que futuro ele poderia oferecer a uma mulher como Carol, acostumada a uma vida cara? Uma vez, quando ele viu alguma dúvida nos olhos verdes e úmidos de Carol, lembrou a ela uma cena de Casablanca.

Ilse, a heroína do filme, estava em dúvida entre o amor de sua vida, Rick, um homem desajustado que tocava um bar, e o seu marido, Victor, um ativista anti-Alemanha, no apogeu do nazismo.

Rick diz a ela, vivida por Ingrid Bergman em sua  beleza soberba, para ficar com o marido.

Era um cínico, um bêbado, mas mais que tudo um idealista que fingia não crer em nada. Rick sabia que era importante na luta contra o nazismo que Victor estivesse firme e resoluto na alma, e sem a mulher isso não aconteceria.

“Você deve ir com ele”, disse Rick. “Se não for, vai-se arrepender, talvez não hoje e nem amanhã, mas em breve e para sempre.”

Em breve e para sempre. Pedro gostava desta fala de Rick. Com essa fala ele convenceu Ilse a seguir com o marido.
“Por que essa é a nossa história?”

“A primeira linha, Pedro.”

Ele não se lembrava da primeira linha. Ela cantou para ele. Tinha uma voz não de cantora, mas agradável e afinada.
“Spring was never waiting for us, dear. It went one step ahead as we followed in the dance.” Carol estava certa. A primavera jamais esperara por eles, esteve sempre um passo adiante.

“Nós. Nós dois. Pedro. Nós não vivemos a primavera da nossa história. Jamais alcançamos. E eu quis tanto, Pedro. Você talvez ache que eu estou falando isso só porque me sinto culpada. Não é isso, Pedro?”

Não. Pedro acreditava na sinceridade de Carol.

“Pedro. Eu vi que você era feito para mim no dia em que você me deu um beijo no rosto depois de entrevistar o meu marido lá em casa. O arrepio que eu senti. Ah, Pedro, você pensa que isso acontece sempre na vida de uma mulher?”

Pedro se lembrou de uma expressão que lera num romance de Norman Mailer. Há uma única vez na vida de uma mulher em que um cara entra numa sala e parece a ela que um macaco está se mexendo em seu estômago.

“Você não errou, Carol. Foi só o tempo que errou. Cheguei na hora errada. A festa era à noite, e eu cheguei de manhã.”

Agora ele se lembrava quase que por inteiro da letra da música que fizera Carol telefonar para ele. Um verso parecia feito para Carol.

I recall the yellow cotton dress floating like a wave on the ground beneath your knees.

Me lembro de seu vestido amarelo de algodão flutuando como uma onda no chão sob seus joelhos.

Uma vez foram ao Parque do Ibirapuera tomar sorvete na barraca de um italiano mal-humorado. Num determinado momento Carol se ajoelhou na grama, olhou para o céu, fechou os olhos e respirou fundo, como se estivesse meditando ou rezando.

Seu vestido não era amarelo, e nem de algodão, mas também ele flutuou como uma onda ali no Ibirapuera.

“Pedro. Tem um verso que eu não sei se é uma metáfora, ou se é literal. Someone left the cake out in the rain. I don’t think that I can take it cause it took so long to bake it, and I’ll never have that recipe again. O que você acha?”

Alguém deixou o bolo na chuva. Não sei se vou suportar isso, porque me custou tanto fazer o bolo, e a receita está perdida para sempre.

Mais ou menos isso. O que se perdera: o bolo mesmo num passeio a um parque, ou a receita de um amor único?

O que o autor quisera dizer? Pedro preferia a hipótese romântica.

“Uma imagem. Quer dizer, acho que é.”

“Nós. Nós perdemos o bolo, Pedro?”

“Por que tantas perguntas difíceis, Carol? Por que você não me pergunta apenas se estou feliz?”

“Você está feliz, Pedro?”

“Sim, estou feliz. Feliz da melhor maneira possível.”

“Melhor maneira possível?”

“Brincadeira. Apenas estou feliz.”

Pedro estava citando uma frase da peça Anjos na América. Uma mulher diz que está feliz da melhor maneira possível. “De mentirinha”.

“Pedro?”

“Carol?”

“A última frase. Eu também sempre vou me perguntar por quê.”

Ele riu.

A frase final de MacArthur Park.

After all the loves in my life, you’ll still be the one, and I’l l ask myself why.

Depois de todos os amores de minha vida, você será sempre o maior, e eu me perguntarei por quê.

Essa última pergunta era pungente. Por que um amor fracassa? O tempo sempre erra, como acontecera com Carol e Pedro?

“Eu também, Carol. Eu também vou me perguntar sempre por quê.”

“Pedro. Tenho que desligar. Vai começar uma reunião aqui na minha empresa. Jura que nunca vai me esquecer. Mesmo que você saia com cem mulheres. Jura que nunca vai me esquecer.”

“Como eu poderia te esquecer, Carol? Aquele vestido flutuando como uma onda no chão sob os seus joelhos dobrados. Como eu poderia esquecer você, Carol?”