A novidade na literatura brasileira tem 73 anos. Por Luísa Gadelha

Ela espera que, com o prêmio Jabuti, as pessoas leiam mais os seus livros

A escritora Maria Valéria Rezende, cujo último romance, Quarenta Dias, ganhou o prêmio Jabuti 2015, recebeu o DCM em sua casa, na cidade de João Pessoa – PB. “Era o meio do mato, agora é o meio do mundo”, comentou, sobre os arredores da casa onde vive há 25 anos com irmãs de sua congregação, em um bairro que tem se tornado, nos últimos anos, cada vez mais populoso e refinado.

“Sou mais mestre-de-obras que escritora”, acrescentou, pois fez curso de pedreiro na década de 60 e cuida, até hoje, das reformas na casa em que vive, desde a compra de materiais aos projetos e execução.

Maria Valéria nasceu em Santos, São Paulo, em 1942, durante a segunda guerra mundial. Nessa época, havia freqüentes blecautes nas casas próximas à orla, para evitar que as mesmas fossem alvos de submarinos alemães. Uma das memórias da infância de Maria Valéria é o fim da guerra, quando ela pôde sair de casa à noite para enfim ver a cidade iluminada.

Cresceu em um ambiente cercado de escritores e políticos. Escreve desde pequena. Aos 8, 9 anos, concebia peças de teatro a partir de figurinos que montava com base num baú de vestimentas antigas que possuía em casa. Criança xereta, como os outros a chamavam, observava a troca de favores que ocorria entre políticos – ao me narrar esse fato, recitou alguns versos da marchinha de carnaval Maria Candelária (Maria Candelária / É alta funcionária (…) Começa ao meio-dia / Coitada da Maria / Trabalha, trabalha, trabalha de fazer dó / À uma vai ao dentista / Às duas vai ao café / Às três vai à modista / Às quatro assina o ponto e dá no pé).

Estreou na literatura aos 59 anos, com a publicação do romance Vasto Mundo. Tem mais dois Jabutis, na categoria Infanto Juvenil, pelos livros No risco do caracol e Ouro dentro da cabeça. Este último, ela conta, foi escrito, na verdade, para neoleitores, com forma gráfica e ritmo apropriado para iniciantes, depois que um colega seu, professor, relatou a dificuldade de ler O vôo da guará vermelha – outro romance da escritora – com jovens e adultos. Assim, o Ouro dentro da cabeça foi editado com letras grandes e margens não justificadas à direita, de forma que o neoleitor possa acompanhar a leitura sem se perder.

A própria Maria Valéria, devido a um olho cego e a catarata em outro olho, mantém seus hábitos de leitura com o auxílio de uma lupa, para livros impressos, ou com ebooks, no tablet, com a fonte aumentada.

Sobre seu processo de escrita, mostrou-se aborrecida com o que nomeou “achatamento da língua portuguesa”: palavras que se perdem, como a divertida e antiga expressão desmancha prazeres, que deu lugar a spoiler. Ou verbos utilizados cada vez mais de maneira genérica, como ouvir, ver e falar, ao invés de escutar, enxergar e dizer, que denotam mais uma atitude voluntária do que um processo fisiológico, como os primeiros.

Justamente quando refletia sobre isso, não apenas viu, mas enxergou, com o olho sadio, um ovinho de lagartixa no chão de seu jardim, que se assemelhava a uma pérola. Guardou o ovinho, que mais tarde lhe renderia um hai-kai – ela afirmou ter centenas e centenas de hai-kais escritos, e que as crianças são as melhores pessoas para compreendê-los.

Denominou seu romance Quarenta dias de “ficcio-biografia”: primeiro, tinha a história, a ficção, pronta em sua cabeça; depois, viajou a Porto Alegre para vivê-lo: encarnou a protagonista Alice em busca de Cícero Araújo, filho da manicure de sua amiga. Evitou os pontos turísticos e pegava ônibus sem destino, perguntando sobre o personagem fictício. Assim, ganhou a simpatia das pessoas comuns, que se solidarizaram com ela e relataram, também, suas buscas por pessoas desaparecidas. É o contrário da “auto-ficção”, de que tanto se tem falado.

O papel da literatura? Desconfia de toda frase que começa com “A literatura é…”, pois “a literatura não está escrita no ideal platônico, é uma invenção humana”. No seu caso particular, escreve o que vê e ouve, aliás, o que enxerga e escuta, como uma espécie de testemunho. “Não tenho ambição nem condições de ser uma celebridade”, disse, mas espera que, com o prêmio Jabuti, as pessoas leiam mais os seus livros.

Falou sobre o jornalismo atual e o papel da mídia, que serve a seus próprios interesses. Explicou que vivemos em uma profunda crise de civilização, com a volta do conservadorismo e da intolerância. Reclamou do ódio da imprensa à pessoa da presidenta Dilma, ódio esse atrelado ao machismo. “Se tivéssemos um presidente do sexo masculino, ninguém o chamaria de boi”, disse, referindo-se aos xingamentos direcionados à presidenta apenas pela sua condição feminina.

O mesmo acontece com a literatura: hoje em dia fala-se de literatura feminina, enquanto que a literatura escrita por homens é apenas literatura. Espera-se que as mulheres escrevam de uma maneira mais intimista, como Clarice Lispector, e, quando isso não acontece, dizem que elas escrevem como os homens.

Se tivesse que parar de escrever, viveria como editora, para divulgar a literatura nordestina. “É necessário redescobrir o Brasil em termos literários, sem deixar o Nordeste de fora”, argumenta. Recentemente, organizou uma série de e-books de escritores paraibanos, a Coleção Latitudes.

Ao final da tarde, Maria Valéria não me deixou fotografá-la, pois estava com uma virose e ainda cansada da viagem que fez para receber o prêmio Jabuti. Contudo, fotografei sua mão com o ovinho de calango, ou pérola, depende de como quisermos enxergar.

Luísa Gadelha

Luísa é graduada e mestra em Letras, graduanda em Filosofia, ama literatura desde sempre e quadrinhos há alguns anos, tem preferência por romances (longos), sejam clássicos ou contemporâneos e se esforça - ou nem tanto - para ler mais poesia. Isso quando não está vendo séries.

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Luísa Gadelha

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