História

A origem e o significado da expressão “coisa de preto”

Afonso Henriques de Lima Barreto

A expressão “coisa de preto”, usada por Willam Waack em sua debacle, é um clássico do anedotário racista nacional.

Em sua biografia do gênio Lima Barreto, “Triste visionário”, a antropóloga e historiadora Lilia Moritz Schwarcz explica a origem do dito popular.

Em Triste fim [de Policarpo Quaresma], Lima anota a paisagem do porto do Rio, onde repara também nas cores. “Havia simples marinheiros; havia inferiores; havia escreventes e operários de bordo. Brancos, pretos, mulatos, caboclos, gente de todas as cores e todos os sentimentos, gente que se tinha metido em tal aventura pelo hábito de obedecer” (Barreto, 2011: 343). Cores aqui aparecem junto com a ideia de “inferioridade” e de “obediência” – duas heranças impiedosas de tempos não tão distantes da escravidão [o livro é de 1915]. Novamente por meio dos detalhes podem ser traduzidas as denúncias mais constantes desse escritor, para quem a literatura tinha um papel a cumprir diante da realidade do país. Devia ser militante, como temos dito, e a favor dos mais humildes.

A associação entre cor e trabalho é ainda sublinhada nos relatos de Lima, quando descreve, por exemplo: “Uma madrugada fui passear uma hora antes de sair o sol para admirar, à minha vontade, o solene silêncio da paisagem, mas, bem depressa ouvi elevar-se nos ares o hino que cantam em coro os negros no 145 artigo | lilia moritz schwarcz momento de começar o trabalho” (Barreto, 1919). Relacionar negritude e trabalho vem dos tempos da escravidão, quando Antonil (2011), em 1711, em Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas, mostrava como os negros eram “as mãos e os pés do senhor de engenho”. O dito vingou e vinculou de forma indelével os africanos ao trabalho, assim como reproduziu e ampliou o preconceito ao trabalho manual, considerado “coisa de preto”. No entanto, o relato traz também elementos da sociabilidade negra, feita nas brechas, com os cantos que ajudavam a fazer o tempo passar, ao mesmo tempo que construíam novas formas de solidariedades e irmanavam.

O momento mais forte da associação da negritude com a pobreza e a humilhação pode ser encontrada em Diário do hospício e no romance incompleto Cemitério dos vivos. Duro consigo mesmo, Lima denuncia seu próprio preconceito: “Não deixava de influir também nesse grande desprezo que tinha pelos homens do Brasil, uma boa dose de preconceito de raça. Aos meus olhos, todos eles eram mais ou menos negros e eu me supunha superior a todos”.

Kiko Nogueira

Diretor do Diário do Centro do Mundo. Jornalista e músico. Foi fundador e diretor de redação da Revista Alfa; editor da Veja São Paulo; diretor de redação da Viagem e Turismo e do Guia Quatro Rodas.

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Kiko Nogueira

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