“Alemanha quer mudança, mas não com populistas de direita”, diz ao DCM cientista política alemã

Atualizado em 29 de setembro de 2021 às 11:14
A cientista política Ulrike Guérot. Foto: Wikimedia Commons

A vitória do partido de centro-esquerda SPD nas últimas eleições legislativas alemãs reflete um movimento europeu de redefinição da esquerda, na visão da cientista política Ulrike Guérot.

A professora na Universidade de Bonn afirma em entrevista ao Diário do Centro do Mundo que o resultado surpreendeu o país.

Segundo a fundadora do think tank European Democracy Lab, é por meio de uma capacidade a formar novas alianças que os social-democratas devem chegar à chancelaria alemã, após negociações com verdes e liberais, no que deverá ser o primeiro governo tripartite da história alemã.

Para a pesquisadora, a derrota do partido conservador CDU (União Democrática Cristã) se consumou três dias depois da confirmação dos resultados e início das negociações para formar uma coalizão.

Outro recuo é o do partido ultraconservador AfD (Alternativa para a Alemanha), que passou de 15% dos votos em 2017 e agora estagnou na faixa dos 10%.

“As pessoas têm vontade de mudança, mas não querem confiar a mudança às mãos de populistas e partidos de direita porque elas não têm confiança (neles)”, avalia a cientista.

“Elas não têm confiança na ideia de que esses partidos saibam governar”, explica.

Segundo Ulrike Guérot, se a formação da coalizão parlamentar que governará o país deve levar meses, a indefinição não é mais se o SPD vai liderar a próxima coalizão, mas sob que programa.

“Há dois partidos que têm muita vontade de governar, de chegar ao poder: os verdes e os liberais. Eles farão de tudo para chegar a um acordo”, analisa.

DCM: Por que o partido de centro-esquerda SPD ganhou as eleições na Alemanha?

Ulrike Guérot: Por costume. É verdade que a vitória de Olaf Scholz é surpreendente, ou pelo menos inesperada há algumas semanas.

Creu-se por muito tempo que chegaríamos a uma coalizão verde-preto.

Depois de algumas semanas, que Laschet cometeu alguns erros, que Annalena Baerbock caiu nas pesquisas, que Scholz subiu. É uma vitória surpresa, de uma certa forma.

DCM: Uma coalizão de centro-esquerda será possível entre social-democratas, verdes e liberais?

Ulrike Guérot: Uma “coalizão semáforo” (alusão às cores de cada partido) é a mais provável neste momento, penso, pois no terceiro dia após as eleições é essa a impressão que predomina em relação ao que vai acontecer.

Vê-se que a novidade no sistema alemão é que haja três partidos. E três partidos que não estão numa linha programática: dois partidos, mais progressistas, ou à esquerda, e um partido muito liberal, industrial.

Por isso vê-se que pequenos partidos, os verdes e os liberais, estão numa posição de “kingmaker” (grupo menor que por meio de sua influência faz um grupo maior chegar ao poder) para ver se se entendem, o que também é novo.

DCM: Mas no espectro político, o que se pode esperar dessa coalizão é um governo ao centro, ao centro-esquerda ou uma repetição do centro-direita, como no caso atual?

Ulrike Guérot: Penso que essas definições não fazem sentido. Estamos numa era política que ultrapassa as clivagens esquerda-direita.

Ainda a encontramos em questão de impostos, nas questões sociais. Mas há outros temas, que são dominantes na campanha, isto é, o clima, a transformação da sociedade, a transformação digital, o fim da pandemia.

Penso que sobre esses temas os liberais podem convergir com os social-democratas e os verdes, ou seja, ter uma agenda mais por assunto político do que por clivagem política.

Dito isso, fica claro que em relação a temas mais sensíveis, principalmente a taxação de fortunas, de heranças, se vamos continuar a taxa de solidariedade, que foi introduzida em 1989, há 30 anos – os liberais querem alterá-la, é claro que há problemas de negociação.

Há uma ala esquerda do SPD, mas Olaf Scholz é centrista, com um partido centrista. Os verdes são, de fato, progressistas, em todas as questões sociais, temas modernos, como a diversidade, mas não são um partido radicalmente à esquerda no plano social como por exemplo o partido Die Linke (a Esquerda).

Olaf Scholz
Olaf Scholz, líder do Partido Social-Democrata alemão. Foto: Wikimedia Commons



DCM: SPD e Verdes são dois partidos que justamente pretendem aumentar os impostos, enquanto o FDP quer diminuí-los. O que se pode esperar dessa batalha?

Ulrike Guérot: Nesse momento, iniciam-se as negociações de coalizão sobre tudo, sobre o armamento, por exemplo, em que todos formulam seus pedidos cruciais. Penso que o compromisso chegará.

O compromisso pré-concebido. Christian Lindner (líder dos liberais) disse frases aqui e acolá que indicavam uma possibilidade de acordo. Mesma coisa em relação aos verdes. Estruturalmente é difícil, mas factível.

Em segundo lugar, há o dever de formar um governo. Não há outra opção séria agora. Parece-me bastante evidente, três dias depois das eleições, que a CDU se retire.

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Dado que Lindner já se retirou das negociações há quatro anos, o que não o ajudou – negociou e se retirou, penso que ele não vai fazer de novo.

Há dois partidos que têm muita vontade de governar, de chegar ao poder: os verdes e os liberais. Eles farão de tudo para chegar a um acordo.

DCM: Com os países escandinavos agora totalmente governados pela esquerda, além da Espanha e Portugal, a Europa está virando à esquerda?

Ulrike Guérot: O que é a esquerda hoje? A esquerda não é a mesma do que antes de 1968.

Em todos os países europeus, há uma esquerda e uma esquerda radical, os social-democratas e partidos à sua esquerda.

É o que se vê na Grécia, na Espanha, na França, na Alemanha. A esquerda não está unida. Entre a esquerda radical e os social-democratas, esquerda moderada, há um cisma. É isso que levou à queda nos resultados da esquerda em todos os países europeus.

A esquerda clássica está mais em queda. Mas você tem razão ao dizer que através dos social-democratas, de uma esquerda moderada, que é mais capaz do que em outros tempos de fazer coalizões com centristas, ou até partidos burgueses, conservadores, como na Alemanha agora, isso produz uma reconfiguração peculiar.

Fazem com que as questões sejam menos de: é uma política de esquerda ou é uma política de modernização, de ecologização?

DCM: Uma crise provocada por uma possível aliança da CDU de Angela Merkel com a AfD derrubou a aliada da primeira-ministra do comando do partido conservador, que agora vive uma nova derrotada, mas nas eleições. O que está acontecendo com a CDU?

Ulrike Guérot: Em primeiro lugar, a CDU governou por 16 anos. Então, ela está desgastada. Governar por 16 anos é desgastante. Portanto, eu estou entre os que dizem que a derrota da CDU não é por causa de Armin Laschet.

Poderiam ter colocado qualquer pessoa no lugar dele, seriam 16 anos de qualquer maneira e um cansaço enorme. Foi como com (Helmut) Kohl, havia uma vontade de mudança.

O país queria outra dinâmica, ver outras personalidades. Isso é perfeitamente normal. Há um debate sobre o tempo de governo: deve-se limitar a 8 anos de legislatura? Eu sou pessoalmente bastante favorável porque 16 anos é muito tempo.

O que está acontecendo dentro da CDU? É muito complexo. Em linhas gerais, a CDU perdeu seu grande tema, a Europa.

Ele não é mais percebido como o grande partido europeu, pois os sinais emitidos por Angela Merkel ao longo de sua legislatura são complexos. Não digo que Angela Merkel fez uma política antieuropeia.

Ela não teve visão. Ela priorizou a administração e a estabilidade, não apostou em grandes projetos.

É preciso diferenciar a política alemã segundo as crises globais, a crise dos refugiados, nas quais as forças europeias eram diferentes.

A política de segurança apenas com os franceses e sem os britânicos não é o melhor dos mundos. Diferente dos anos 1990, a CDU não despontou como o grande partido europeu.

Do ponto de vista econômico, a CDU se tornou muito mais conservadora, tornou-se neoliberal.

Em realação a todos os dossiês de grande importância, como o casamento homossexual, ela se tornou mais progressista.

Em termos sociais, podemos ter a impressão de que ela se tornou progressista e, em política socioeconômica, ela se tornou mais clássica, neoliberal. Isso deixa um partido como uma imagem peculiar.

Diz-se que Angela Merkel levou o partido à esquerda, o que é verdade em relação aos temas societais, mas não é verdade quanto ao coração da política, que é a socioeconômica. Isso rasgou a CDU.

É a AfD que habilmente utilizou o vácuo que emergiu na adoção de políticas societais como o casamento homossexual, de educação, com um posicionamento clássico conservador, à direita, porque a CDU deixou um vácuo nesses temas.

Alice Weidel e Alexander Gauland
Alice Weidel e Alexander Gauland, líderes do partido de extrema direita AfD. Foto: Wikimedia Commons


Outros fatores contribuíram para a crise da CDU: as pequenas batalhas entre (Hans-Georg) Maassen, personagem quase de direita, mas ainda assim na CDU, (Friedrich) Merz, (Markus) Söder ou Laschet, da ala cristã, europeia e liberal da CDU, contra uma ala mais conservadora e neoliberal do partido, que domina nesse momento.

Tudo isso faz com que, nesse momento, a CDU deva repousar, reorientar-se, esclarecer-se.

DCM: Por que diante de um possível afluxo de imigrantes afegãos, os resultados do partido de extrema direita AfD caíram em relação a 2017?

Ulrike Guérot: É uma pergunta interessante à qual eu não tenho uma resposta clara.

Parece haver um grande ressentimento no país. A pandemia suscitou muita ira social, muitos gritos para mudar o país.

Poderia se esperar que a AfD, único partido que criticava as medidas governamentais, defendia a “liberdade”, que era contra o confinamento, pudesse subir, mas isso não aconteceu, como nos outros países.

Sobre diversos temas, tais como a pandemia e os refugiados, os partidos de direita são os únicos a formular a crítica de maneira dura e aberta. Eles terminam sem se beneficiar.

A Alemanha não é uma exceção em relação a isso, o que é muito bom.

O que é isso mostra? Isso mostra que as pessoas têm vontade de mudança, mas não querem confiar a mudança às mãos de populistas e partidos de direita porque elas não têm confiança.

Elas não têm confiança de que esses partidos saibam governar. Elas não têm confiança de que esses partidos tenham estruturas e pessoas, personagens suficientes para governar.

Elas têm provavelmente uma desconfiança que esses partidos (não) saibam de grandes assuntos políticos, como sociais e econômicos: eles são suficientemente experientes? É uma grande questão.

Então, ter um consentimento em relação a certos assuntos populistas ou compartilhar de certos valores populistas, mesmo ter um ressentimento ou desejar uma mudança política não são suficientes para votar em populistas na Alemanha e outros países europeus.

Acima de tudo, é uma questão de desconfiança em relação ao que esses partidos podem, ainda que haja um “flerte”, um piscar de olhos para o que eles dizem.

DCM: Houve na Alemanha uma campanha de artistas para comprar toneladas de panfletos da AfD e jogá-los no lixo?

Ulrike Guérot: Eu não tenho conhecimento disso. É possível, há muitas “flash mobs”.

Sei que houve um litígio envolvendo a AfD, que copiou os cartazes da campanha dos verdes.

Eles copiaram o layout e o estilo dos cartazes para colocar frases bastante racistas. Isso foi proibido. Houve um grande escândalo.

Falando da AfD, é importante dizer que AfD leste e AfD oeste não são a mesma coisa. No (estado) Saxe, a AfD terminou em primeiro lugar. A situação não é uniforme no país inteiro.