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Um algoritmo não daria uma decisão proibindo passaporte de vacina. Por Lenio Luiz Streck

Profissional da Saúde segura vacina contra covid – Foto: Reprodução

Um algoritmo não daria uma decisão proibindo passaporte de vacina

Por Lenio Luiz Streck

Abstract: Desembargador do Rio compara o passaporte de vacina ao nazismo; cuidado: e se alguém decidir inverter falas?

Este artigo traz um exercício dialético: usarei um argumento contra minhas convicções acerca do papel dos algoritmos. Poderia simplesmente escrever um texto criticando a decisão do des. Paulo Rangel. Mas quero ir um pouco além. Para mostrar que um problema pode ser um problema tão grande que é um problema independentemente da perspectiva adotada.

Com efeito, para surpresa — ao menos minha — o Rio de Janeiro acordou com uma decisão que concede a uma senhora, com extensão a todos os demais habitantes, o direito fundamental a não se vacinar. Sim, enquanto choramos por 600 mil mortos, o desembargador nega o valor da vacinação. Pode até dizer que não. Porém, ao tornar não obrigatório o passaporte de vacina, deixa que entendamos desse modo.

O fato: O desembargador concedeu liminar nesta quarta-feira (29/9) para cassar parte do decreto do prefeito Eduardo Paes que impedia o acesso a lugares públicos e privados sem a carteira de vacinação. A medida atendeu a um pedido de habeas corpus de uma moradora da cidade, a quem foi concedido salvo conduto, e, em razão de seu caráter coletivo, é extensiva à população de um modo geral. Eis uma parte da decisão:

“Já disse em outra oportunidade e aqui repito. O decreto divide a sociedade em dois tipos: os vacinados e os não vacinados, impedindo os NÃO VACINADOS de circularem livremente pelos locais em que cita do Município do Rio de Janeiro com grave violação à liberdade de locomoção.”

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Mais:

“O propósito é criar uma regra não admitida juridicamente, mas que visa marcar o indivíduo constituindo uma meta-regra que está associada ao estigma do NÃO VACINADO. É uma ditadura sanitária. O Decreto quer controlar as pessoas e dizer, tiranicamente, quem anda e não anda pelas ruas da cidade.”

 Ele chega a citar Erving Goffman. Fala de estigmas (aliás, o título do livro de Goffman é Estigma). E compara a exigência de passaporte ao regime nazista.

Não é preciso dizer muito. Trata-se de uma decisão equivocada, voluntarista e inconstitucional. Vai contra a vida, para ser bem simples. O mundo chora milhões de mortes. No Brasil há uma luta contra o negacionismo. O próprio presidente da República vai à ONU negar vacina e defender tratamentos que a medicina rejeita.

Sequer se trata aqui do (falso) dualismo, do “legal, mas imoral”. A decisão é lamentável de qualquer ponto de vista.

A pergunta é: precisava uma decisão judicial para apoiar as teses negacionistas? Muitas coisas “violam” o direito de ir e vir, se for essa a nossa interpretação (ruim) de “ir e vir”. Será que não podemos fazer mais e melhor que isso? A liberdade das pessoas tem limites. Você não está proibido de ir a qualquer lugar, segundo a Prefeitura do Rio. Basta que você se vacine. Mas se você não quiser se vacinar, você tem ônus decorrentes da convivência social. Direito à saúde. Eis a questão.

Liberdade para passar vírus para outras pessoas? Será esse o escopo da decisão, que, paradoxalmente, termina citando Brecht? O que a exigência de passaporte vacinal tem a ver com judeus perseguidos ou escravos marcados? Isso eu gostaria de saber. Há limites?

A decisão é um exemplo claro de ativismo e voluntarismo, o que dá no mesmo. Termino usando um argumento contra mim. Tenho feito críticas aos algoritmos e o uso de robôs em decisões. Porém, ao ver a decisão do estimado Rangel, com o qual tanto convivi aos tempos de James Tubenchlack (que tenho certeza não concordaria com a decisão), fico pensando se, em algumas hipóteses, não seria melhor algoritmos decidirem. Ou até mesmo, quem sabe, um juiz que siga estritamente as leis, o que é desejável na democracia, como diria Jeremy Waldron ou Tom Campbell. Até o textualismo seria um avanço nesse país.

“Violação à liberdade de locomoção”? É para ver como é possível dizer qualquer coisa com qualquer conceito quando não se explica o que se entende pelo conceito. É por isso que nos falta epistemologia. Falta-nos uma explicitação das condições de possibilidade pelas quais podemos dizer que algo é. O que o desembargador pensa sobre liberdade? Sobre direitos? O que é isto — o direito? O que é isto — a liberdade?

Decisão

Diz a decisão que o propósito do passaporte de vacinação é “criar uma regra não admitida juridicamente, mas que visa marcar o indivíduo constituindo uma meta-regra que está associada ao estigma do NÃO VACINADO“. É? Posso afirmar o contrário. A decisão de Rangel é que uma “meta-regra não admitida juridicamente”, porque é uma decisão que garante um direito fundamental à não-vacinação. Por quê? Porque não é um direito fundamental. Muito simples. Essa decisão não resiste à mais simples criteriologia decisória.

É por essas e outras que nos falta a mais simples criteriologia decisória. Para que o Direito possa dizer que isso não é admitido pelo Direito. A decisão é judicial. Mas não é jurídica. E é esse o grande busílis.

Portanto, é paradoxal que talvez fosse até mesmo preferível um algoritmo ou textualismos ultrapassados para combater voluntarismos no Judiciário.

Explico: um jus robô cujo código-fonte operasse a partir de uma programação contendo declarações como “vacinas são imprescindíveis e salvam vidas” ou mesmo “a saúde da sociedade melhora com a vacinação” já seria suficiente para evitar decisões desse quilate. Qualquer máquina assim superaria o falso — muito falso — dilema de liberdade vs. saúde.

Pronto. Qualquer juiz textualista-originalista entenderia que a Constituição do Brasil não comporta esse tipo de decisão, carente de um mero verniz de juridicidade. Que coisa, não?

Quando temos saudade de textualismos ou até preferimos robôs, é porque talvez tenhamos que rever urgentemente nossos conceitos sobre o direito. Isso para dizer o menos.

(Texto originalmente publicado em CONJUR)

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