As assombrosas declarações do chanceler alemão no Brasil. Por Sara Vivacqua

Atualizado em 1 de fevereiro de 2023 às 23:14
Olaf Sholz e Lula, em encontro ocorrido em Brasília. Foto: Ueslei Marcelino/REUTERS

 

As declarações à roda de imprensa do chanceler alemão Olaf Scholz em sua viagem ao Brasil foram assombrosas, senão sombrias. A naturalidade, autoconfiança e oportunismo com que ele vai à América Latina expandir a declaração de guerra à Rússia feita pela sua ministra das Relações Exteriores em pleno parlamento, e forçando alianças bélicas no Chile, Argentina e agora Brasil, traz vários alertas para o mundo.

Quando Annalena Bärbock do Partido Verde, diz que seu país, junto com outros, está em guerra com a Rússia, ela desmonta o argumento de mero apoio militar à Ucrânia. Já não é possível sequer falar de uma guerra por procuração. Faz-se oficial a guerra dos países da OTAN contra a Rússia. Me pergunto se ela tem mandato do povo alemão para isso, e por que Scholz não a exonerou imediatamente.

As posições abertas de Scholz sobre a guerra da Ucrânia estão em sólida congruência com o desejo destrutivo da OTAN e a insaciabilidade delirante de Zelensky para mais e mais armas e nenhuma negociação de paz.

O total alinhamento de Scholz com a retórica da OTAN é perturbador, e me fez pensar se a declaração de guerra aberta de Annalena Bärbock poderia realmente ser apenas negligente de um ponto de vista interno ou realmente apoiada pelo menos por uma disposição do governo alemão.

Scholz disse e repetiu que a Rússia deve admitir a derrota, retirar-se e devolver à Ucrânia os territórios conquistados. Esta declaração está alienada da realidade militar e política no terreno, e de qualquer possibilidade de levar qualquer conflito a uma resolução diplomática. Ela portanto só pode ser entendida como um sinal aberto de que a Alemanha não irá negociar nada e aceita apenas uma total rendição russa, incluindo devolução do Donbas. A guerra será eterna enquanto dure.

A declaração de Scholz é assustadoramente irresponsável no contexto de quão próximo geograficamente seu país está da Rússia, das relações históricas e das realidades econômicas contemporâneas (a Alemanha está agora usando carvão), e o perigo de uma escalada. A OTAN nunca ouviu falar de diplomacia, mas Scholz deveria pelo menos ser diplomático em seu vocabulário e retórica pública. Se recortado, poderia ser um discurso de Clinton ou Trump, ou de qualquer porta-voz do Pentágono.

É medíocre que o filho de dois trabalhadores da indústria têxtil alemã, que entra no Partido Social Democrata aos 17 anos de idade e se definiu como “jovem socialista”, se dissocie do seu passado e do passado de seu partido. O Sozialdemokratische Partei Deutschlands (SPD) desempenhou um papel fundamental na Revolução Alemã de 1918-1919, que proclamou a Alemanha uma república, e que colaborou para que a Alemanha em sua Constituição Federal seja um estado social-democrata consagrando a luta de classes como forma de Estado.

Mas realmente extrapolante foi a solicitação de Scholz para que Lula enviasse munições para a Ucrânia. Lula fez questão de recusar publicamente e claramente, em sua sutileza pediu que se pronuncie mais a palavra “paz” e requisitou a criação de um grupo de negociação incluindo a Alemanha, a França e os “amigos chineses, que podem desempenhar um papel importante”.

Esse pedido de munição ao Brasil para a guerra da Europa é um ato de alienação política ou de má fé de Scholz, considerando que um dos principais itens da agenda é o combate conjunto à ascensão da extrema-direita.

Países que não fazem parte desta guerra, ao contrário da Alemanha, não precisaram alimentar a máquina de propaganda suprimindo instrumentalmente o conhecimento sobre a extensão dos grupos neonazistas na Ucrânia aos quais estas armas também são destinadas. Mas, além disso, nós os reconhecemos como parte do aparato estatal da Ucrânia. Nós não mentimos para nos mesmo e somos capazes de assimilar a realidade.

Não é fato contencioso que a Ucrânia tem milícias neonazistas na folha de pagamento do governo, que agem e matam civis como parte de seu exército regular usando tortura como método, aterrorizam a mais de 8 anos as minorias russas, e incendiaram uma guerra civil no Donbas. Quão mais perto pode-se estar de 1933? Para não esquecer, EUA, vários países europeus e a União Europeia financiaram as milícias neonazistas na região. O governo do Reino Unido chegou a treina-las. Um velho modus operandi, pois são os mais impiedosos para derrotar o inimigo. Se a Rússia tinha o direito de invadir, é uma questão diferente, e não exclui a capacidade de negociar a paz.

Scholz também parece não estar lendo o ambiente em que ele se encontra. O PT e a esquerda latino americana são historicamente críticos à interferência dos EUA no bloco leste e sua reivindicação de que o bloco leste é uma “zona de influência dos EUA”.

Está escrito em sangue nas páginas da história comum neste continente e na onda de lawfare contemporâneo como os EUA fabricam sua própria lei internacional marginalizando acordos bilaterais. Com a Rússia não foi diferente; a partir da segunda administração Bush todo e cada tratado diplomático assegurando o fim da guerra fria foi rescindindo unilateralmente pelos EUA.

Aqui se está bem ciente de que Zelensky é um produto de um governo formado em uma revolução colorida (golpe de estado) liderada pelos neoliberais “neocons” norte-americanos e operando como um interesse ampliado dos EUA no bloco leste. A esquerda brasileira não esqueceu a participação direta do Departamento de Justiça e o Departamento de Estado dos EUA no golpe parlamentar contra Dilma e que a prisão de Lula era um presente da CIA. Não é coincidência histórica ou zeitgeist, é política de Estado do EUA.

Scholz foi vexaminoso na sua arrogância ao desconhecer a nova posição de países como o Brasil no mundo, e a posição menos confortável da Alemanha e nações até então fundadas no mito da hegemonia. As novas realidades geopolíticas já não sustentam o culto às ideias hegemônicas do chamado “mundo ocidental” (the colective west).

E, ainda que as sociedades fundadas nos pilares da exploração e sedimentadas nas ideias de superioridade cultural por séculos, insistem em perpetuar esse papel e a guerra fria com a Rússia, a realidade já começa a demonstrar que a ignorância cultural e paixão de dominação destas nações não tem tanto fôlego nem influência. Já não são tão senhores e os demais não tão escravos. O tabuleiro do xadrez das velhas potências ruiu.

Neste contexto, é genial a fala de Lula ao naturalizar o multilateralismo como realidade, ao declarar que a ONU não corresponde à realidade política e está operando anacronicamente como se houvesse uma guerra fria, e que o Brasil e os países africanos querem aderir ao Comitê de Segurança da ONU. Ele anuncia novos protagonismos. Esta mensagem parece simples, mas, para mim, ela vai ao âmago desta guerra e de uma nova realidade que estamos construindo. Ela enterra o fim da guerra fria e seus mecanismos internacionais, e anuncia o surgimento de uma nova ordem mundial. Lula expôs a esquerda europeia imperialista e cooptada pelas ideias neoliberais. Scholz pode aprender com Lula, fica a oportunidade.

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