Brasil

Assassinato de Marielle representa o fechamento de horizontes que vivemos no Brasil. Por Luis Felipe Miguel

Publicado originalmente no perfil do autor no Facebook

POR LUIS FELIPE MIGUEL, professor de ciência política da UnB

No Brasil, nestes últimos tempos, temos acumulado símbolos. Símbolos demais, infelizmente: símbolos de nosso fracasso como projeto de nação, da barbárie em que nos lançamos, da violência que não é mais apenas exercida mas também exaltada.

O maior símbolo de todos é, penso eu, Marielle Franco.

Seu assassinato foi a representação brutal do fechamento de horizontes que vivemos no país. Uma mulher negra, da periferia, combatente por uma sociedade mais justa e solidária: não há lugar para gente assim no “novo Brasil” que se está construindo.

A comoção nacional que a morte de Marielle e de seu motorista Anderson Gomes causou não foi capaz de produzir justiça nem de incendiar a resistência. Lemos aqui a insensibilidade profunda dos donos do poder e também nossa própria incapacidade de organização efetiva.

Vilipendiar a memória de Marielle tornou-se um dos esportes favoritos da extrema-direita. Logo após o crime, as fabricações do MBL e de outros grupos da mesma laia deram a todos um vislumbre do que é a sórdida indústria das “fake news”. E a imagem dos dois brutamontes triunfantes quebrando a placa em homenagem à vereadora, durante a campanha do candidato vitorioso ao governo do Rio, ilustra com perfeição o Brasil em que estamos vivendo.

Quando Marielle foi morta, já começávamos a intuir. Com o passar das semanas, o descaso e a cumplicidade cada vez mais evidentes da autoridade policial reforçaram a impressão. E hoje não há mais margem para dúvida: aquele crime sintetizou com perfeição o momento que vivemos, o momento da travessia do golpe para o fascismo.

E, para completar, no final de outubro, sagrou-se vencedor das eleições presidenciais o único político de expressão nacional que não foi capaz de um gesto mínimo de humanidade: lamentar e condenar a execução de Marielle.

Mas símbolos são cheios de facetas, permitem múltiplas apropriações. Eles querem fazer do descaso e da desumanidade um emblema da própria vitória. Mais de oito meses se passaram e a esperança de que a justiça será feita se dissipa. Eles jogam isso na nossa cara, eles mostram que não ligam para a justiça, nem para as aparências, nem para nada. A morte de Marielle e a impunidade dos assassinos compõem seu símbolo.

Já a Marielle que nos serve de símbolo não é a mártir que tombou pela mão covarde de bandidos, mas a pessoa que manteve a espinha ereta, que cresceu sem jamais esquecer quem era, que mostrou que era possível lutar, resistir e construir coletivamente um futuro diferente, que se multiplica por inspirar com sua vida uma nova geração de ativistas. A Marielle que está “presente!”, como nos acostumamos a responder em tantas manifestações pelo Brasil afora.

Pensei tudo isso ao esbarrar, por acaso, num poema triste e poderoso da grande Renata Pallottini:

OS MORTOS

Os mortos estão deitados
mas os seus nomes tremulam sobre as campinas como flâmulas,
voam sobre as campinas a memória de suas faces
e a brancura de seus ossos perduráveis;

dizei, dizei dos mortos o que vos parecer,
eles estão deitados sob o limo com os olhos fechados,
com fibras e raízes onde estavam os olhos,
e com sumos e chuvas no lugar que era a boca;

Só a nossa lembrança os reúne e os congrega,
somos nós nossos mortos e estamos enterrados
e jazemos nós mesmos misturados às flores.
Dizei portanto as sentenças e os crimes,
já não podeis condenar-nos à morte.
Já pouco importa.

Porque estamos deitados,
vitoriosos e sós, imaculados, livres,
com as mãos cheias de terra e de silêncio.

Diario do Centro do Mundo

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