Bolsonaro nunca foi santo e agora não vai virar mártir. Por Donato

Atualizado em 8 de setembro de 2018 às 18:37
Bolsonaro é socorrido após ataque

É por vivermos em um estado democrático que o autor da facada em Jair Bolsonaro está detido e não tenha sido esfolado vivo por uma turba sanguinolenta e depois pendurado em um poste. É por vivermos em uma democracia que os que pedem por intervenção militar podem fazê-lo. Porém, como já disse Ciro Gomes, a democracia é uma delícia, mas tem seus custos. Vá explicar o enunciado acima para o requisitante de militares no poder. Ou para qualquer partidário do autoritarismo.

Por isso, vamos falar a verdade? Enquanto adversários políticos enviam mensagem de ‘pronto restabelecimento’, condenam a violência, suspendem suas agendas de campanha (um tanto por receio outro tanto para reflexão nos rumos que as coisas tomaram), Jair Bolsonaro vem explorando o episódio política e eleitoralmente.

Passou a dominar o noticiário, esteve gravando vídeos de dentro da UTI (!!) como se em campanha. Está aproveitando ao máximo toda a repercussão. E vamos falar a verdade de novo? Ele não está nem aí para os discursos e manifestações de repúdio à violência. Nem ele, nem seus semelhantes. Pelo contrário, mantém a linguagem beligerante.

Empoderados pelo atentado contra o líder agora acamado, seus correligionários não alteraram o discurso em nenhuma vírgula, não amenizaram em nada. Gustavo Bebiano, presidente do PSL, foi claro: “Agora é guerra”.

Bolsonaristas estão desde o primeiro momento querendo ligar o autor do ataque ao PT – o que é uma mentira descarada – e nem o PSL, nem Bolsonaro pai, nem Bolsonaros filhos têm feito nada para desmentir. Pelo contrário. Lideranças como Silas Malafaia anabolizam as lorotas.

O pastor afirmou que “o criminoso é militante do PT e assessora a campanha de Dilma ao senado”. Confrontado, Malafaia não apagou o tuíte. O general Augusto Heleno, cogitado para ser vice antes de Mourão, associou o crime “aos ideiais marxistas”, ciente de como isso chega aos ouvidos de seus simpatizantes. ‘Esquerdopata’ e termos afins significam PT para pessoas de mentalidade binária.

Adelio Bispo de Oliveira é claramente perturbado mentalmente e, se não compreender isso é ser tão lunático quanto, querer incutir racionalidade e propósitos lúcidos em seus atos é perverso, ou aproveitador, ou ambos.

Malafaia, em louca cavalgada por distorcer o acontecimento, joga a suspeita de armação no perfil psiquiátrico de Adelio. “Esquerdopatas são os reis da simulação e do cinismo, eles mesmos que infiltram notícias falsas”.

A afirmação do pastor exige duas observações. A primeira é que dificilmente podemos conferir esse título aos petistas (ou esquerdopatas, como prefere o religioso). Bolsonaro também não goza de grande prestígio e, prova disso, é que nas primeiras horas – para não dizer até agora – o que não faltou foi gente desconfiando de que o ataque não passava de simulação e teatro do candidato. A segunda observação é um flagelo da primeira.

O ceticismo quanto à motivação e a suspeita de jogada ensaiada é algo com que Bolsonaro não pode ficar chocado. Ele é sempre um dos primeiros a levantar suspeitas sobre episódios semelhantes que envolveram o PT. Quando a caravana de Lula foi atingida por tiros, Bolsonaro ironizou, afirmou que aquilo tinha sido forjado, que era obra dos próprios petistas.

Algumas semanas depois, quando o acampamento Marisa Letícia, em Curitiba, também foi atacado e um sindicalista foi atingido por um tiro de 9 mm e internado em UTI, testemunhas afirmaram ter ouvido gritos de ‘Bolsonaro presidente’ no momento do atentado (algo que já vinha ocorrendo em noites anteriores em tom de ameaças).

Assim como agora, toda pessoa ‘de bem’ considerou aquilo um ataque à democracia. Já Bolsonaro, se não comemorou, também não fez nenhum pronunciamento, não repudiou a ação. Justiça seja feita, ele nunca deixou de mostrar de que lado estava.

O que o candidato não pode reclamar é da frase mais repetida por seus opositores desde a famigerada quinta-feira: ‘O que se planta, colhe-se’. Ele mesmo recorreu a ela em março deste ano, quando a caravana de Lula, dias antes dos tiros, recebeu uma chuva de ovos. Na época, Bolsonaro declarou que eram consequências da política petista, que o PT estaria “colhendo os ovos, pois Lula quis transformar o Brasil em um galinheiro”. Como se vê, um galinheiro pelo menos não traz consequências pontiagudas.

Há tempos Bolsonaro faz acusações sugerindo que o PT é formado por criminosos assassinos. Em um vídeo, afirma que a morte de Luís Eduardo Magalhães foi suspeita por favorecer Lula; que para Lula ser candidato em 2002 “tiveram que matar Celso Daniel”; diz estranhar a saída de Joaquim Barbosa do STF (ao mesmo tempo que diz ‘não querer fazer ilações’). Com um discurso similar e tão pleno de provas quanto o meme que está circulando com a chamada “Já percebeu que todo mundo que mexe com o PT acaba morto?”, ele finaliza dizendo acreditar que estaria “nessa lista aí para 2018” (veja abaixo).

Para ficarmos apenas nos fatos mais recentes, Bolsonaro chutou para longe um boneco inflável que caracteriza Lula (tempos atrás já tinha feito o gesto de atirar no boneco), disse que iria “fuzilar a petralhada” (enquanto segurava um tripé simulando um fuzil), passou a fazer o gesto de atirar antes mesmo de dar bom dia (fez até no leito hospitalar!). Bolsonaro, como sempre, afirma que essas atitudes são brincadeiras, que não pode ser acusado de incitação à violência (e no que depender do Judiciário não será mesmo, pois tudo o que se refere ao militar é tomado como ‘frase infeliz’, ‘é de mau gosto, mas não é racismo’, e assim vai).

O general Augusto Heleno declara ser injusto classificar Bolsonaro como violento. No entanto, ainda que o candidato nunca tenha levado a cabo e posto em prática seu discurso, a verdade é que Bolsonaro banaliza a violência e depois não quer assumir as consequências. Daí, para ele, “as pessoas são más”, como declarou na maca do hospital.

É lamentável que tenhamos chegado a um estágio de recrudescimento da violência, mas, enfim chegamos, e se o capitão reformado tem a altivez de firmar-se de um lado da trincheira, eu também sei de qual lado devo me posicionar. E nunca estarei ombro a ombro com quem propaga preconceito, ódio, discriminação, arrogância, racismo, que prega autoritarismo, que ironiza e promete aniquilar direitos humanos. Que faz troça da cultura e do conhecimento (Bolsonaro afirmou não entender a ‘tara’ que pessoas têm com os estudos e formação superior).

Assim como nunca deixarei de expressar de que lado estou. Como escreveu Elie Wiesel, judeu húngaro, sobrevivente do holocausto e ganhador do Nobel da Paz em 1986: “A neutralidade colabora com o opressor, nunca com a vítima. O silêncio encoraja o atormentador, nunca o atormentado”.

A violência deve ser, primeiramente, evitada, combatida e condenada. Mas… nem toda violência pode ser colocada na mesma balança com pesos iguais. A violência do nazifascismo não pode ter o mesmo peso que a praticada na luta dos civis em reação, pela resistência.

Os crimes cometidos pela ditadura militar não podem ser equiparados às ações de grupos libertários. A violência do oprimido contra o opressor não pode ter o mesmo peso, senão temos, tempos depois, uma anistia para os dois lados que, na verdade, interessa a apenas um.

Bolsonaro, mesmo sem nunca ter desferido uma facada em um negro, sempre representou a manutenção – e até intensificação – de um sistema já sabidamente genocida contra os negros e pobres. Adelio Bispo de Oliveira precisa ser julgado pela ótica dessa ameaça. Não pode ser inocentado, mas é necessário ter cuidado para que o outro prato da balança não esteja vazio.