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Censura ao Porta dos Fundos reafirma tendência de magistrados para o autoritarismo, avaliam juristas. Por Paulo Henrique Arantes

A charge de Helô D’Angelo e o magistrado censor, Benedicto Abicair

A censura imposta ao programa natalino do grupo humorístico Porta dos Fundos não é um caso isolado, simples ato de um juiz que baseia suas decisões nos princípios morais e religiosos que segue em vez de apegar-se à lei. Trata-se, isto sim, da mais recente manifestação no Brasil de uma nova forma de autoritarismo, surgida no limiar do Século XXI e caracterizada não pela ruptura democrática formal, mas por ações específicas contra segmentos, grupos e pessoas determinadas.

Batizada de “autoritarismo líquido” pelo advogado Pedro Serrano, professor de Direito Constitucional da PUC SP, essa onda abrange o mundo inteiro, provocando destruição maior na América Latina, onde tem na crista o Poder Judiciário.

A liminar concedida pelo presidente do STF, Dias Toffoli, derrubando a suspensão do programa, não ameniza a gravidade e o simbolismo de atos como o do desembargador Benedicto Abicair, do TJ do Rio de Janeiro.

“Eu tenho defendido que na América Latina o autoritarismo líquido, por meio de medidas de exceção, é agenciado de forma mais estrutural pelo sistema de justiça”, afirma Serrano.

Decisões como a de Abicair, que determinara à Netflix que retirasse do ar o vídeo do Porta dos Fundos, dão-se em um contexto de exceção, cujas medidas brotam “por intermédio do Judiciário de forma mais preponderante do que por outros Poderes, com apoio da mídia”, segundo Serrano.

O jurista refere-se a tais condutas como “suspensão de direitos de pessoas ou grupos selecionados, configurando uma forma mais cirúrgica de autoritarismo, de tirania”.

“Essas medidas têm uma aparência de cumprimento da democracia e dos valores jurídico-constitucionais, mas isso é uma maquiagem. Na verdade, são medidas tirânicas. No caso do Porta dos Fundos, a medida pode até ser considerada constitucional na forma, mas no conteúdo nada mais é do que censura, algo expressamente proibido pela Constituição. O argumento do juiz é absolutamente inconsistente no plano jurídico”, explica Pedro Serrano. “O que tivemos foi uma decisão agressiva à Constituição, que implica uma persecução tirânica a uma manifestação artística cujo conteúdo pode ser criticado, mas não censurado”, acrescenta.

Um trecho da sentença proferida pelo desembargador Abicair dá a exata dimensão do caráter moralista, e não legalista, do seu julgamento. Para o magistrado, proibir a exibição do vídeo do Porta dos Fundos seria a ato “mais adequado e benéfico, não só para a comunidade cristã, mas para a sociedade brasileira, majoritariamente cristã. Até que se julgue o mérito do agravo, recorre-se à cautela para acalmar os ânimos”.

Com isso, o juiz parece premiar o terrorista Eduardo Fauzi, que jogou bombas na sede do Porta dos Fundos e fugiu para a Rússia.

“Não temos uma cultura robusta de liberdade de expressão, e isso se traduz num Judiciário que é bastante voluntarista e intuitivo, que protege o discurso de que gosta e ataca aquele do qual não gosta”, avalia Rubens Glezer, professor de Direito Constitucional da FGV Direito.

Para Glezer, é chocante a crueza técnica da decisão do desembargador Abicair. “É muito escancarada a falta de fundamento na argumentação. Ele escancarou que, como cristão, não gostou do programa. E o derrubou”, nota o jurista.

Registre-se que o caso Porta dos Fundos não é o primeiro do gênero no Brasil. Entre figuras conhecidas do entretenimento brasileiro, das mais politizadas às mais estúpidas, a atriz Mônica Iozzi e o humorista de direita Danilo Gentili já foram censurados pela Justiça.

“Neste caso específico, além da censura em si, que é absolutamente reprovável, o que mais preocupa é o fundamento para que o juiz pudesse censurar. É o fundamento de uma visão moralista e muito pessoal”, diz o advogado criminalista Antônio Carlos de Almeida Castro, conhecido como Kakay.

“Essa decisão vem na linha adotada por parte dos ministros do Supremo Tribunal Federal, que resolve fazer leituras pessoais, a partir de uma visão moral e de uma visão própria da Constituição”, percebe Kakay, e vai além: “Isso pode ser reflexo deste momento difícil do país, um momento punitivo, um momento em que a sociedade está dividida, assim como o Poder Judiciário”.

Para coroar sua análise, Kakay cita o jurista Lênio Streck: “O Judiciário está querendo pautar a moral e os costumes da sociedade”.

A charge reproduzida no começo do texto é de Helô D’Angelo.

Paulo Henrique Arantes

Jornalista com mais de 30 anos de experiência nas áreas de política, justiça e saúde.

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Paulo Henrique Arantes

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