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Como narrei a ditadura brasileira. Por Jan Rocha

Como narrei a ditadura brasileira

Publicado originalmente por Jan Rocha no site Outras Palavras

Eu tive a ideia de publicar algumas das matérias que escrevi para a BBC durante a ditadura quando ouvi o presidente descrevendo aquele período dos anos de chumbo como um movimento democrático, negando as torturas e elogiando um torturador. Naquela época, a BBC de Londres era a rádio estrangeira mais ouvida no Brasil, transmitindo em ondas curtas, em inglês e português.

Em tempos de censura, a BBC virou uma importante fonte de notícias.

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Entre a segunda metade de 1973 e o fim da ditadura em março de 1985, eu enviei centenas de matérias sobre a situação política, sobre os problemas econômicos, sobre a inflação altíssima, o desemprego, a fome, os saques. Escrevi sobre a censura, a tortura, as prisões, os protestos dos estudantes, as greves dos trabalhadores, os manifestos de militares dissidentes. O assassinato de padres, jornalistas, líderes sindicais. A cassação de políticos. A abertura “lenta, gradual e segura”. A pragmática diplomacia brasileira. O acordo nuclear com a Alemanha Ocidental. As relações difíceis com os Estados Unidos. A crise do petróleo. A revolta dos cientistas. A corrupção escondida. O pacote de abril. A caça aos comunistas. O movimento pela anistia. A volta dos exilados. As bombas da ultra direita. O movimento das mulheres.

Escrevi sobre a destruição da floresta amazônica por estradas, hidrelétricas e fazendas de gado, e os protestos de líderes indígenas contra a invasão das suas terras. Também sobre os esquadrões da morte, no Rio e São Paulo. E sobre a poluição letal de Cubatão.

Noticiei a descoberta do torturador coronel Brilhante Ustra¹ no Uruguai, o nascimento do PT e o surgimento do novo líder, Lula. Acompanhei o crescimento do movimento Diretas Já e a traumática morte de Tancredo Neves², presidente eleito.

Como ainda não existia a internet, mandava as minhas matérias por telefone e telex, às vezes por fita cassete levada por algum passageiro internacional para driblar a censura da Polícia Federal. A maioria foi ditada por telefone da minha casa, do meu escritório na 7 de Abril, às vezes até de um orelhão. As matérias por telex eram enviadas do escritório de Reuters, na Rua Libero Badaró, ou da agência dos Correios na Rua Marquês de Itu. Em Brasília e no Rio, enviava matérias do meu quarto de hotel, ou do escritório da agência Reuters.

Eu guardei todas os originais das minhas matérias, enviadas por telex, datilografadas, às vezes escritas a mão.

Muitas pessoas sempre perguntaram como eu sabia das coisas, como eu conseguia me informar, já que estava tudo censurado. Descobri muitas notícias frequentando as redações dos jornais, entre eles o Jornal do Brasil, Estadão, Jornal de Brasília, Movimento, Veja, TV Globo. Eu ia muito à redação do Estadão, primeiro na Rua Major Quedinho, no centro, onde algumas notícias censuradas eram pregadas em um mural, depois no prédio na Marginal Tietê, para onde o jornal mudou em 1979.

Em Brasília, eu frequentava principalmente as redações do Jornal do Brasil e do Estadão. Em ambas havia jornalistas que me passavam notícias.

E na sala de imprensa do Congresso, sempre havia algum repórter que estava por dentro dos últimos rumores, conspirações, ou comentários em off.

Na medida em que fiquei mais conhecida, as pessoas me telefonavam de vários pontos do Brasil para denunciar coisas que estavam acontecendo. E eu, pouco a pouco, estabeleci uma rede de contatos em todo o país, com pessoas de confiança para quem eu poderia telefonar para checar alguma informação.

Naquele tempo havia uma boa rede de colaboração entre os correspondentes das várias agências de notícia estrangeiras – Agence France Presse, EFE, AP, UPI, Reuters –, e como medida de segurança, íamos sempre juntos cobrir manifestações, greves etc.

Em 1977 criamos um clube dos correspondentes, a SIESP – Sociedade da Imprensa Estrangeira em São Paulo (hoje ACE – Associação dos Correspondentes Estrangeiros), para termos uma entidade que falasse e agisse em defesa de seus membros, quando necessário. Na busca por notícias eu ia também aos julgamentos do tribunal militar na Avenida Brigadeiro Luis Antônio, onde às vezes era possível conversar com os próprios presos, ou com seus familiares e advogados – e visitava os escritórios dos advogados, ia aos sindicatos, ia à Cúria, atrás das notícias.

Passei por alguns momentos assustadores. Em 1975, voltava de uma visita à hidrelétrica de Água Vermelha no interior de São Paulo com um produtor da BBCTV, quando o avião monomotor sofreu um pane e teve de fazer um pouso forçado num campo. Felizmente, ninguém se machucou seriamente.

Dois anos depois, em Brasília, fui atropelada por um carro quando atravessava a rua entre o Congresso Nacional e o Itamaraty. A motorista me levou ao hospital. Lá, ela, que não tinha habilitação, convenceu o PM de plantão a não lavrar um boletim de ocorrência. Tenho sequelas até hoje.‌

Os sustos vinham também pelo telefone. Ligações anônimas, geralmente despejando palavrões, aconteciam depois de eu enviar matérias que desagradavam.

Agora, neste momento de tentativas de negar a história, ou reescrevê-la, creio que as minhas matérias podem ser úteis para mostrar a realidade daquela época, escritas por alguém que estava lá.

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