Copacabana e Pará mostram como Bolsonaro armou o Brasil do século 19. Por Leonardo Sakamoto

Atualizado em 6 de dezembro de 2023 às 22:54
Montagem de fotos de atentado no Pará e justiceiros no Rio de Janeiro
Atentado no Pará e justiceiros no Rio – Reprodução

Por Leonardo Sakamoto

A Polícia Rodoviária Federal e a Funai sofreram um atentado, nesta segunda (4), no Pará, quando os veículos em que seus servidores estavam foram emboscados e metralhados. No Rio de Janeiro, grupos de vigilantes urbanos se juntam para fazer (in)justiça com as próprias mãos. Em Santa Catarina, redes sociais se inflamam com vídeo de deputado criticando resgate de escravizados. Os casos mostram como os quatro anos de Jair Bolsonaro serviram para empoderar o Brasil que se recusa a deixar o século 19.

Um funcionário da Funai foi atingido e levado ao hospital. Os servidores atuavam na ação de retirada de invasores das Terras Indígenas Apyterewa e Trincheira Bacajá, a maior operação de desintrusão em curso hoje no país, respaldada por Luís Roberto Barroso, presidente do Supremo Tribunal Federal.

São madeireiros e garimpeiros ilegais que resistem em deixar o território que não é deles e ameaçam de morte os moradores tradicionais e os agentes do poder público. Uma decisão liminar do ministro Kassio Nunes Marques havia suspendido a retirada dos invasores, mas foi revertida por Barroso. O vai e vem aumentou, ainda mais, a tensão na região.

A política de Bolsonaro para os territórios indígenas (atacar e sequestrar as instituições de monitoramento e controle da União e dar suporte, através de sua ação e omissão, a quem invadiu áreas indígenas, que são terras públicas federais), trouxe fome e doença. Isso gerou pelo menos 570 crianças do povo yanomami mortas em quatro anos.

No ano passado, 80% de todo o desmatamento aconteceu em áreas federais, sob a bênção de Jair Bolsonaro, que desmobilizou os mecanismos de fiscalização e apoiou os criminosos que fazem parte de sua base eleitoral para invadirem e explorarem ao arrepio da lei.

E através da liberação de armas para os chamados CAC (Colecionadores, Atiradores e Caçadores), ele deu “argumentos” para que garimpeiros e madeireiros resistissem ao retorno da lei na Amazônia mesmo se ele deixasse o poder.

“Hoje, vocês têm uma realidade que é a posse e o porte de arma estendido para o homem do campo. Armas de fogo, mais que segurança familiar, nos dão a certeza de que essa pátria jamais será escravizada”, disse Bolsonaro em um discurso em setembro do ano passado. Pediu “força para resistir e coragem para decidir”.

Seis dias antes dos atos de caráter golpista e antidemocráticos de 7 de setembro de 2021, Bolsonaro avisou, em um evento da Marinha, que “se você quer paz, se prepare para a guerra”.

O provérbio, que vem do latim (si vis pacem, para bellum) e é repetido ao longo de séculos, uma variação de uma declaração atribuída ao escritor romano Flávius Vegetius Renatus, que viveu no final do 4º século de nossa era. Significa isso mesmo que parece. Bolsonaro não falou em sentido figurado. Estava preparando uma guerra. E um dos lados, aquele que ataca a liberdade em nome da liberdade, foi armado até os dentes.

Decreto do governo Lula, em julho, reverteu essa política, mas o estrago já havia sido feito. Para além de quem coleciona, atira esportivamente e caça de fato, matadores de indígenas e membros do PCC também foram os beneficiados. Há mais de um milhão de armas de fogo em poder dos CACs.

Sob o seu governo, segundo o TCU, o Exército não se mostrou capaz de garantir a checagem de documentação para conceder licenças a quem não contava com antecedentes criminais ou cassar quem ganhava ficha corrida após o registro. Não é incompetência, mas projeto.

Em SC, crítica a resgate de escravizados

O atentado no Pará tem o mesmo DNA dos ataques feitos contra o presidente Lula pelo deputado federal Rafael Pezenti (MDB-SC) após uma operação resgatar 17 trabalhadores de condições análogas às de escravo em uma lavoura de cebola, em Ituporanga (SC), incluindo um rapaz menor de idade.

Ou seja, a percepção de que vivemos nos século 19, não no 21. Pois, considerando-se que trabalho escravo é legalmente proibido desde 13 de maio de 1888, tudo isso é uma busca por um Brasil anterior a essa data.

Ele divulgou vídeo criticando a fiscalização e sugerindo que ela servia para arrecadar recursos a fim de bancar as “viagens internacionais para Lula e Janja fazerem lua de mel” e “pagar o enxoval renovado com algodão egípcio do Palácio do Planalto”. As declarações circularam entre produtores rurais do interior de Santa Catarina conflagrando ânimos contra servidores públicos que simplesmente cumpriam a lei.

Auditores fiscais do trabalho sofreram ataques semelhantes aos de outros servidores públicos que atuam na fiscalização, como funcionários do Ibama, do Incra, do ICMBio, da Receita Federal. O discurso foi o mesmo em diferentes áreas: com Bolsonaro no poder, eles não poderiam autuar sob o risco de perderem o emprego ou coisa pior.

A coluna conversou com auditores que afirmaram que, durante o governo passado, sentiram hostilidade maior entre os empregadores rurais. De deboches e insinuações sobre o fim da fiscalização com a nova conjuntura política até a exposição de armas e ameaças. Foi comum empregadores se exaltarem e irem para o enfrentamento mesmo.

É quase uma caricatura da situação, mas o fazendeiro Antério Mânica, condenado como mandante da Chacina de Unaí, quando quatro funcionários do Ministério do Trabalho e Emprego foram emboscados e mortos em 28 de janeiro de 2004, pediu votos para Bolsonaro em 2022. Neste ano, ele foi finalmente condenado e preso. Em 2004, o caso chocou o mundo. Hoje, coisas assim fazem parte da paisagem.

Jair Bolsonaro com mão no peito e expressão séria
O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) – Reprodução/Agência Brasil

No RJ, grupos criminosos de justiceiros

Mais armas em circulação somadas ao discurso bolsonarista da Justiça com as próprias mãos e ao fracasso do poder público em garantir segurança à população, fazem renascer grupos de vigilantes urbanos.

Matéria do UOL, nesta quarta (6), aponta que a policia está investigando grupos que estão saindo às ruas com pedaços de pau, tacos de baseball e escolta armada para espancar suspeitos de roubos no Rio de Janeiro. Uma horda deles tocou o terror em Copacabana entre a noite desta terça e a madrugada de hoje.

Justiceiros existem há décadas no Rio. Mas esse tipo é diferente daqueles que exterminam quem comete assaltos, formados por agentes de segurança. Temos agora a normalização de grupos de cidadãos comuns que se acham no direito de decidir o certo e o errado.

Bolsonaro, ao longo de seu governo, autorizou esse tipo de ação sob a justificativa de que “a liberdade individual seja a máxima”. O bolsonarismo que ficou como sua herança imagina uma República em que as regras e normas que balizam a vida em sociedade sejam deixadas de lado em nome da lei do mais forte, ou melhor, do mais armado. Acham que estão sendo herói quando, na verdade, confundem-se com os bandidos que dizem combater.

Dissemina, dessa forma, um projeto de sociedade miliciana, onde a Justiça é trocada pelo justiçamento. Na qual a mediação dos conflitos naturais em toda a sociedade é atacada em nome da possibilidade de cada um resolver da forma como melhor entender os seus problemas sem o “incômodo” de fiscais trabalhistas e ambientais, agentes da Polícia Federal e da Polícia Civil, promotores e procuradores, juízes, desembargadores e ministros, deputados e senadores. Da Constituição Federal.

Essa sociedade miliciana invadiu as sedes dos Três Poderes, 8 de janeiro, em uma tentativa de golpe de Estado porque havia sido devidamente autorizada para tanto. Não queriam Justiça para o que achavam correto, queriam justiçamento, reequilibrando o universo com a força de suas próprias mãos.

A impunidade a tudo isso levará a reforçar a ideia de que os crimes cometidos por seguidores da extrema direita são realmente manifestações justas de “movimentos espontâneos”. O que porá um fim, mais cedo ou mais tarde, e espontaneamente, à democracia.

Juscelino Kubitschek teve um plano de levar o Brasil 50 anos adiante em apenas cinco. Jair Bolsonaro afirmou, em entrevista à Rádio Jornal, de Barretos, em outubro de 2018, que o objetivo de seu governo era fazer “o Brasil semelhante àquele que tínhamos há 40, 50 anos atrás”.

Conseguiu muito mais o que queria. Em muitas áreas, incluindo a que trata da natureza da violência armada, voltamos ao período do império ou da colônia.

Publicado originalmente em UOL

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