Crônica: A demissão de Karol com K e o Cu do mundo de Caetano. Por Paula Corrêa

Atualizado em 28 de fevereiro de 2021 às 18:54
“Toda semana víamos o show e voltávamos para comprar dois novos ingressos para a semana seguinte”
Por Paula Corrêa*

Na noite em que Karol Com K foi demitida do BBB, vi as movimentações nos grupos de whatsapp e no Instagram. As pessoas demonizando e comemorando sua saída. Logo na sequência vejo um colega jornalista postando “a mais triste nação, na época mais podre, compõe-se de possíveis grupos de linchadores”, de um disco de Caetano que ouvi muito – com meu irmão – chamado “Circuladô”.

Um disco sensacional que começa com “Fora da ordem” (Alguma coisa está fora da ordem/ fora da nova ordem mundial”), e que ainda diz “Aqui tudo parece que era ainda construção/ e já é ruína”, e também “Eu não espero pelo dia/ Em que todos/ Os homens concordem/ Apenas sei de diversas/ Harmonias bonitas/ Possíveis sem juízo final”.

Caetano já havia escrito sobre esses versos da música Cu do mundo no Globo, em 2014, referindo-se ao linchamento do garoto que ficou preso a um poste no Flamengo, no Rio de Janeiro.

Por que será que Circuladô foi um disco tão marcante para mim? Um disco que traz um girassol, minha flor preferida, em sua capa, e é de 1991, quando eu tinha por volta de 15 anos? Foi uma época em que eu e meu irmão íamos a muitos shows e ouvíamos muita música.

Fomos assistir Marisa Monte no Olympia, no show do disco “Mais”, que também ouvimos muito. Toda semana víamos o show e voltávamos para comprar dois novos ingressos para a semana seguinte. Foram umas três ou quatro seguidas. Cada vez que íamos, ficávamos mais embasbacados com ela, sua banda, o Gigante Brasil na bateria, e a beleza dela a cada vez que conseguíamos chegar mais perto.

Não era um tempo em que éramos tão espertos e informados sobre assédio e racismo. Nessa época, eu suspeitava de longe sobre a capacidade masculina de assediar mulheres, e hoje, aos 40, vejo quantas vezes fui assediada… e tenho vontade de me vingar de todos eles, tanto os que ainda estão na família – que muito abafou os casos em nome das boas relações, dos tapas nas costas e do fingimento de que estava tudo bem – quanto dos professores, vizinhos, enfim…

Nessa época também, eu não tinha noção de que existia racismo. E por muitos anos, muito ingenuamente, achei que era tão óbvia a superioridade negra frente aos brancos (em tudo, não somente nas coisas mais óbvias como música, esportes, força física e beleza, mas também na intelectualidade, na inteligência, na força de superação, na exuberância, no charme, na arte) que simplesmente não me dava conta do tamanho do abismo em que vivíamos.

Mas talvez, (ah, Caetano, me lê, vai?) Caetano estivesse me intuindo e instruindo, quase sem que eu percebesse ou me desse conta completamente, ao ouvir Circuladô com tanta efusividade e paixão na minha adolescência. E, claro, também li “Verdade Tropical”, na época, e achei muito legal que ele fosse tão verborrágico e escrevesse parágrafos tão grandes com tanto despudor (entre tantas outras coisas que achei quando li).

Mas eu também ouvia muito heavy metal, e (Teresa Cristina, me lê?) adorava Van Halen e Iron Maiden, além de Metallica, Ozzy, Guns, e ficava tirando tudo na guitarra – que ganhei aos 15 anos quando escolhi este presente no lugar de uma festa de debutante.

Penso também em “Boas Vindas”, “Meus irmãos e eu/ Minha mãe e eu/ E os pais da sua mãe/ E a irmã da sua mãe/ Lhe damos as boas-vindas/ Boas-vindas, boas-vindas/ Venha conhecer a vida/ Eu digo que ela é gostosa”, que fez parte irremediavelmente da minha vida naquele momento, em que minha vida girava em torno à família e entre essas relações que me fundam até hoje.

Depois Caetano canta uma música esquisita que sempre pulávamos (haha, desculpa, Caetano!), “Ela ela”, cheia de barulhos, microfonias e esquisitices, com Arto Lindsay. Aí vinha “Santa Clara Padroeira da Televisão”, uma música que já começa começando, algo que adoro, quase vindo a letra antes da música, ou começando no mesmo compasso. Para quem escreve desde sempre como eu, isso é uma lição também literária. Não enrola, vai direto, “tantos níveis de um sinal que lê, e segue inteira”.

“Dê benção padroeira para essa gente brasileira que quer paz para trabalhar”. Uma oração, um lamento, “Baião da Penha”, parece dizer que precisamos resgatar a fé, a crença em algo, um chamado ao pé do ouvido, ajoelhado, em que ainda diz “minha voz talvez não tenha o poder de te exaltar”, em que pese o tamanho de um Caetano, realmente nem ele – nem Bethânia com toda a sua misericórdia e pedido de vacina, e respeito e verdade, nem Gal entoando o coro da plateia mandando-o para aquele lugar, e Gil cantando a Amazônia, os pedidos dos Doces Bárbaros não reverberam mais a ponto de derrubar nada, de mobilizar um monte de gente – ou a juventude – ou a velhitude, ou seja lá o que for, para derrubar um governo, um genocida, um nada. Nem ajoelhados. (Mas eles continuam a dizer, o que é –nossa!- gigante!!!).

Mas aí vem Neide Candolina, que dá um pedala no racismo, no conservadorismo e no preconceito. Neide Candolina é quase antever o Brasil de hoje, quando pensamos em Marielle, quando assistimos às lives de Teresa Cristina, quando penso na nobreza das pessoas pretas em seguirem mesmo em meio a tanta podridão e torcida contra, e na sua superioridade frente à cidade “a porcaria da cidade / tem que reverter o quadro atual/ pra lhe ser igual”.

E para quem escreve, ainda pensando na literatura, Caetano vem nos limites da “água da palavra”, colocando-a nas águas de um rio, descendo lepidamente, desviando das toras, das pedras, epifânico, falando também de masculinidade, do silêncio, da dureza, em “Terceira margem do rio”, que, ainda na PUC-SP, ouvi o professor Cassiano Sydow Quilici destrinchar esse conto de Guimaraes Rosa atordoada com a imensidão de Guimaraes, de Caetano, e do próprio Cassiano.

Numa parceria linda com Gal, “O cu do mundo”, que me parece uma antevisão aspiral e “reconvexa” de “Recanto” (disco lindo de Gal que Caetano ajudou a parir), aí sim, ele faz a sua máxima que agora vem completamente à tona com “a mais triste nação, na época mais podre, compõem-se de possíveis grupos de linchadores”, com essa história de BBB.

E agora a história do BBB já é passado, já é assunto da semana passada, já passou, já trouxe outros personagens, e a Karol que agora já está sem K talvez esteja indo para o exterior passar algum tempo para ser um pouco esquecida. Veja bem, ela não está sendo linchada pelo seu trabalho, como é a deputada Talíria Petrone, como foi Jean Wyllys, como foi Márcia Tiburi. Pelo que entendi até agora, ela era adorava pelos jovens que se espelhavam nos seus versos e tranças para se libertarem.

Talvez tenha lhe faltado uma Gabriela Priolli, que ajudou Anitta e seus seguidores a entender o que era um deputado federal. Talvez tenha lhe faltado tantas coisas, numa vida esburacada e incivilizatória.

O disco termina com “Coisa linda”. Antes do nosso vulcão petrificar a todos em volta, antes de sairmos tomando rivotris para dormir e anfetaminas para acordar, Caetano arrefece. No amor e na humanidade. “Minha humanidade cresce, quando o mundo te oferece, e enfim te dás, tens lugar”. Todos temos que ter lugar. Algum lugar. Acolhida. Claro, Bolsonaro não. Mas os que têm humanidade.

Caetano absorve o Brasil inteiro nesse disco. Fala de tudo o que move, de tudo o que importa. E sabem quem era o presidente? Collor. Não falávamos em polarização, em direita, em antipetismo, em Diogo Mainardi, acreditava-se nas edições de debates da Globo, existia a Mulata Globeleza, existia um herói nacional que corria de Fórmula 1 e esse era o máximo próximo a um mito que conhecíamos.

Caetano sabia “lançar-se num claro instante” e veio até hoje e voltou no tempo? Difícil saber em quais meandros sua arte transita. Eu só posso agradecer por ele ter-me dado lampejos civilizatórios no seu disco, que meu irmão comprou na época. “Eu presto muita atenção no que meu irmão ouve”. Hoje, meu irmão está longe, distante.

E na noite em que Karol com K foi fagocitada do “dispositivo que precisa ser cancelado”, o BBB, eu estava vendo reprise da Teresa Cristina no Roda Viva, falando, como Caetano falou há exatos 20 anos atrás, que o Brasil em que ela acredita é destas pessoas e destes artistas que ela reverbera.

Só gostaria que daqui 20 anos meu filho pudesse ir a Paulista comemorar a eleição nacional da juventude preta. E que não haja mais mitos.

A escritora Paula Corrêa (Crédito: Fernando Cavalcanti)

*Paula Corrêa é escritora, poeta e jornalista. Nascida em São Paulo em 1978, cursou Comunicação e Artes do Corpo e é formada em Jornalismo pela PUC-SP. Escreveu os livros de poesia “In Vitro” (2004), “As Calotas Não Me Protegem do Sol (2010)” e “Tudo o que Mãe Diz É Sagrado”, este último pela editora Leya, com quarta capa de Eliane Brum e Ignácio de Loyola Brandão.

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