David Bowie foi a figura mais lírica do rock. Por Caetano Veloso

“Sempre tive a impressão de que ele não era uma pessoa de quem eu um dia fosse saber que morrera”

Este texto de Caetano foi publicado no Facebook.

Soube da morte de David Bowie com atraso. Estava entre Austin, Houston e o Rio, sem me comunicar com ninguém.

Tardei a admitir que certos emails que abri logo ao chegar estivessem dando conta disso. Bowie era 4 anos mais novo do que eu e, apesar de ter tido notícias de que ele sofrera ataques cardíacos, sempre tive a impressão de que ele não era uma pessoa de quem eu um dia fosse saber que morrera.

Assinalo o fato porque não queria que parecesse que ostento desprezo por figura tão importante na história da atividade a que eu próprio me dedico. Na verdade, Bowie e eu nos encontramos, de modo breve e pouco significativo para ambos.

Ralph Mace, o produtor dos meus dois discos londrinos (e que tinha colaborado com Bowie), quis aproximar-me dele: cria que eu devia colaborar com seu trabalho.

Levou-me para ver um show dele na Round House e depois nos apresentou no camarim.

Eu não tinha gostado do show. Isso deve ter sido em 1970. Sendo de uma geração que se empolgara com o clima contracultural dos anos 1960, eu achava o corte de cabelo dele um prenúncio da adesão dos locutores de noticiários televisivos à rebeldia hippie.

Eu gostava dos discos dos Beatles e dos shows dos Rolling Stones. Mick Jagger criava um clima de transformação do mundo em comunhão com a plateia. Bowie esboçava uma estilização intencional que, no entanto, era, aos meus olhos, pouco rigorosa.

Vi muitas coisas que cresceram nos anos 70 dessa maneira. Por outro lado, toda a dialética do pop, que me interessava, ficava abaixo do significado que o Brasil ganhava para mim.

Há a questão geracional: pessoas 10 anos mais novas do que eu se sentiram liberadas pelo estilo de Bowie. Eu me liberara com Jorge Ben, John Lennon e Mick Jagger – além das experiências próprias nossas dos tropicalistas de 1967. Bowie parecia ter surgido para me prender de novo a convenções de palco-e-plateia. Ou seja: perdi o bonde de Bowie.

Só décadas depois é que admiti a grandeza histórica do artista que ele chegou a ser. Vendo o vídeo de “Lazarus”, fiquei impressionado com a força expressiva.

Nunca nenhuma canção de David Bowie ficou em minha cabeça. Hermano Viana me provou que os discos alemães, com a presença de Brian Eno, eram sonoramente instigantes. E sempre vi que Bowie poderia ser grande só pelo “Walk on the Wild Side” de Lou Reed.

“Lazarus” me soou mais forte como concepção de arranjo do que quase tudo dele. E a inserção dessa dança meio robótica, meio espiritual que ele fez e refez tantas vezes ao longo da vida (de fato, um dos mais belos ecos dos espasmos de Elvis) transforma todo o vídeo num acontecimento poético.

Me lembro de uma entrevista em que ele diz ser o Harry Langdon do Rock. Beatles e Stones poderiam ser Chaplin e Keaton, mas ele, Bowie, era a figura menor – e talvez a mais lírica. Tudo somado – e a História dando perspectivas diferentes das anunciadas pelos utopistas da minha juventude – , David Bowie foi um dos artistas mas importantes do pop, desde que o rock é rock.

Enquanto eu fazia “clips do Fantástico” ele redesenhava-se como capas de revistas de moda ou de móveis modernos. Pôs a obra em Wall Street, casou-se com uma modelo preta, gravou um belo vídeo sobre a morte que aconteceu de ser lançado logo depois de ele morrer.

Nesse vídeo ele nos diz que está no céu. E que tem cicatrizes invisíveis. Tem algo das obras de arte arrebatadoras e inesquecíveis.

Diario do Centro do Mundo

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