Dois pesos e duas medidas: o que disse desembargador que censurou Porta dos Fundos ao absolver Bolsonaro

Atualizado em 9 de janeiro de 2020 às 8:41
Benedicto Abicair, desembargador do TJ-RJ Foto: Reprodução

O texto abaixo é o voto do desembargador Benedicto Abicair, dado em 2017, quando absolveu Jair Bolsonaro da acusação de homofobia, por dizer no programa CQC que não participaria de um desfile sobre direitos dos gays porque não promove “os maus costumes”. Também afirmou que seus filhos não casariam com mulher negra porque foram “bem educados” e que esse tipo de casamento seria “promiscuidade”. Abicair foi voto vencido.

Segue o texto:

Trata-se de ação civil pública ajuizada por GRUPO DIVERSIDADE NITERÓI, GRUPO CABO FREE DE CONSCIENTIZAÇÃO HOMOSSEXUAL E COMBATE A HOMOFOBIA e GRUPO ARCO ÍRIS DE CONSCIENTIZAÇÃO HOMOSSEXUAL, em face de JAIR MESSIAS BOLSONARO, objetivando a reparação moral da coletividade e a retratação em rede televisiva nacional, manifestando seu respeito pelas minorias sexuais e seu repúdio a qualquer ato de violência, intolerância e discriminação, desculpando-se com o povo brasileiro por suas declarações realizadas no programa CQC da Rede Bandeirantes, no dia 28/03/2011.

Em sua defesa, fls. 355/372, o réu alega que como deputado federal goza de imunidade parlamentar, e sua aparição no programa televisivo se deu exclusivamente em razão desta condição. Alega ainda que a presente ação é motivada por interesses políticos. A sentença, fls. 471/478, julgou procedente em parte o pedido para condenar o réu a pagar dano moral coletivo no valor de R$150.000,00 (cento e cinquenta mil reais), em favor do Fundo de Defesa de Direitos Difusos, criado pela Lei n o 7.347, de 24 de julho de 1985 e regulamentado pela Lei 9008/95, com correção monetária a partir da presente data (nos termos da súmula 362 do STJ) e juros de 1% ao mês a partir de 2810312011 (nos termos da súmula 54 do STJ). Condenou o réu nas despesas processuais e honorários advocatícios, fixados em 10% do valor da condenação.

O réu apelou, fls. 491/518, prequestionando a aplicação de dispositivos constitucionais, aduzindo falta de interesse de agir dos apelados, ilegitimidade ativa e imunidade parlamentar. Os autores recorreram adesivamente, fls. 554/570, pugnando pela majoração da verba indenizatória para valor não inferior a R$500.000,00 (quinhentos mil reais).

Contrarrazões dos autores, fls. 605/636, e do réu, fls. 652/660.

É o relatório.

Presentes os pressupostos de admissibilidade, recebo os recursos. Cuida a presente demanda de ação civil pública que objetiva a reparação moral da coletividade e a retratação em rede televisiva nacional, manifestando o réu o seu respeito pelas minorias sexuais e seu repúdio a qualquer ato de violência, intolerância e discriminação, desculpando-se com o povo brasileiro por suas declarações realizadas no programa CQC da Rede Bandeirantes, no dia 28/03/2011.

Quanto ao pedido de condenação do réu a declarar, em aparição no meio televisivo de alcance nacional, o seu respeito pelas minorias sexuais e seu repúdio a qualquer ato de violência, intolerância e discriminação, com desculpas à população, foi reconhecida, por sentença, a impossibilidade jurídica do pedido por implicar em violação aos direitos da personalidade do réu, que não pode ser forçado a dar declaração contra a sua vontade.

Já no que pertine à condenação do réu ao pagamento de danos morais, assiste-lhe razão em sua irresignação recursal. É cediço que o programa, aonde ocorreram os fatos, é humorístico e se assemelha, segundo pude constatar, para melhor apreciação do feito, a um circo. Não há, nessa afirmativa, qualquer depreciação na comparação, pois os circos, ao menos na minha infância, tinham por objetivo proporcionar diversão, assim como o fazem os denominados realities shows, em relação à população, principalmente, das classes menos instruídas.

Aqueles que comparecem aquele programa são sabedores que, ali, ocorrerão polêmicas e debates acirrados e pouco respeitosos, posto que esse é o objetivo da grade. Mais ainda. Quando aceitam participar de um embate verbal com um homem que se protagoniza como um defensor de valores ultraconservadores e, sabidamente, em todas as redes de comunicação, manifesta suas opiniões, divergentes das chamadas minorias, de forma contundente e, não poucas vezes, agressiva.

Todos os personagens que lá se encontravam tinham, seguramente, pleno conhecimento de suas exposições, bem como lá, também se encontravam, ao meu sentir, para se promoverem, dentro de suas atividades, para o público telespectador que viabiliza sua produção, também, passível de questionamentos, sobre sua qualidade. Assim, não se pode negar que houve consentimento recíproco de todos os personagens do programa para que cada um se manifestasse, sem censura, sobre seus pensamentos, posições e divergências.

Ademais, não vejo como, em uma democracia, censurar o direito de manifestação de quem quer que seja. Gostar ou não gostar. Querer ou não querer, aceitar ou não aceitar. Tudo é direito de cada cidadão, desde que não infrinja dispositivo constitucional ou legal. Não vislumbro a existência de discriminação, de qualquer natureza, mas, sim, aplicação da livre manifestação de opiniões diversas.

Discriminação, ao meu ver, se constitui inviabilizar o acesso de outrem a cargo, título, função ou atividade laboral, ou ofender, de forma tipificada, quem não atenda seus interesses pessoais, em detrimento da lei. Qualquer um do povo pode não apreciar um relacionamento com pessoas de etnias, religiões, classes sociais ou conceitos diferentes, não significando, necessariamente, que isso se configure discriminação. Esta, conforme minha convicção, repita-se, se caracteriza quando ocorre vedação do direito de outrem de alçar suas merecidas e justificadas conquistas.

O réu se resume em cidadão que exerce seu direito constitucional de se manifestar, subjetivamente, sobre conceitos que considera os corretos, ao seu sentir, assim como os demais interlocutores tem todo o direito de discordar daqueles conceitos e exporem os seus.

Aludido programa, ao convidar o réu, sabia exatamente como iria ele proceder e, se não deu conhecimento aos outros interlocutores de sua presença, deve a produção arcar com os ônus de eventual desídia. Porém, se todos ali já se encontravam, ocupando seus lugares, quando da abertura do programa, presume-se, aliás, constata-se, com segurança de não errar, que anuíram com os termos do roteiro.

Ressalte-se que ninguém se retirou, o que permite afirmar que não se sentiam constrangidos ou indignados, o bastante, com o rumo dos debates. E o mais importante! Veja-se que não foi qualquer deles que ingressou com a ação, mas, sim, uma organização que, supostamente, defende interesses de minorias. Na verdade, alguns se aproveitam do povo, de miserável formação, para se promover e alguns recorrem ao Judiciário para se locupletar.

Fato é que o réu, goste-se ou não, aceite-se ou não, representa mais de quatrocentos e sessenta e quatro mil cidadãos que o elegeram apesar de seus posicionamentos questionáveis. Faço aqui a ressalva de que a conceituada e admirável, ao menos por este relator, artista Preta Gil poderá, querendo, propor as medidas judiciais cabíveis, caso tenha se sentido ofendida de alguma forma, quando, então, serão avaliados os argumentos oferecidos para apurar se ocorreu ou não dano à sua imagem pessoal ou ato discriminatório.

Assim, também, poderão os demais participantes agirem na defesa de seus interesses pessoais. Não vislumbro, pois, no caso concreto, reparação de qualquer natureza a grupos que divirjam dos posicionamentos da parte ré.